Por Anita Deak *

Comprei um tapete carmim para destacar a pele branca. A primeira vez em que vi a foto de Adele, pensei que tivesse sido tirada ao meio dia, o obturador captando luz demais, diluindo os traços, encerando as bochechas, os olhos, os braços, como se ela não tivesse veias, sombras, como se a Adele fosse a primeira mulher do mundo a não sangrar.

Quando a conheci, ela comprimia os olhos, me deu a impressão de que não gostava de luz, e isso foi a primeira coisa que me fez gostar verdadeiramente dela, além da pele branca, dos cílios tão loiros que pareciam fiapos de dente de leão, prestes a ir embora junto com o vento. Lembro que os olhos, uma dilatação azul escura que não se fixava em nada, apagaram de imediato a minha boa impressão. Eram olhos em que não se podia confiar, sempre virados pros lados, pra baixo, pra cima.

No caminho até em casa, olhava pra ela e apontava uns cachorros, uns gatos, umas flores bonitas, coisas que, pela idade, achei que ela pudesse gostar. Ela parecia uma pomba acuada, branca e muda, num silêncio engolido que, naquela mesma noite, trairia com palavras que eu não conhecia, com um choro pra dentro e pancadas na porta do meu porão.

De manhã, eu buscava ser muito cuidadoso. Entrava rápido para que ela não tivesse a chance de espreitar fora; era uma forma de impor limites ao nosso relacionamento, tão passível de se deteriorar quanto qualquer coisa no início. Adele falava, eu não entendia; depositava o café da manhã ao lado do tapete para então pedir gentilmente que ela se sentasse. Às vezes, demorava, mas ela cedia; aqueles braços e pernas brancos contra o carmim do tapete. Tenho na lembrança como nossos melhores dias.

Depois de um tempo, ela começou a ficar deprimida. Eu tinha instalado duas câmeras lá embaixo porque adorava quando ela dormia, as pernas em ângulo reto com o tronco, virada para o lado esquerdo, o braço direito em cima da orelhinha rosa. Ainda estou para ver uma pintura que se compare a Adele. Outro dia, levei uma foto dela aos meus alunos, pedi que a registrassem em aquarela e, sinceramente, nunca mais faço isso. Nenhum deles conseguiu captar além da forma, só uma sucessão de traços que não diziam nada, absolutamente nada da Adele.

Ela dormia cada vez menos. Chorava, gritava, tive de usar caixas de ovos pela casa inteira pra abafar aquele som. Era um barulho que não combinava com ela; de tão pesado, caía pra dentro do corpo minguado da Adele. E no corpo branco se amplificava, subia os degraus do porão e alcançava as minhas córneas, sim, porque não era só de ouvir, eu conseguia ver aquela transformação medonha, uma espécie de tristeza que só o Noturno Op.9, em último volume, conseguia diluir.

Comprei uma boneca que Adele atirou contra a parede. Depois se aproximou e abraçou os restos da porcelana. Desci correndo, a tempo de ver suas mãos cortadas por filetes vermelhos, o que me causou uma ânsia, difícil de descrever… Por mais que eu esfregasse as mãos dela embaixo da pia, a superfície branca voltava a escurecer. Coloquei gaze, fiz um curativo em cruz, mas nada estancava. Não consegui descer pra ficar perto dela durante três dias. Nem as imagens das câmeras me animavam. Nem uma dose de puro malte. Nem Chopin.

De alguma forma, o episódio da boneca mudou alguma coisa entre nós. Adele começou a cantarolar um dia, tinha uma voz que escorria, e, não sei porquê, me lembrava um riacho da infância onde eu deslizava barquinhos de papel. Fiz torradas, geleia, preparei as refeições que eu mais gostava, até cancelei algumas aulas pra ficar mais perto dela. Quando apontava o dedo para o tapete, ela sentava docemente, com as mãos pra baixo para que eu não visse as marcas. Sorria pra mim. E, assim, passaram uns dias até que ela estendesse o indicador em direção à porta. A expressão interrogativa. Virei as costas e subi.

Essas coisas desanimam, sinceramente. Adele voltou a gritar, a jogar tudo o que havia perto contra a parede. Lembrei do exercício de um aluno em que ela aparecia em meio a chamas, o vermelho do fogo consumindo a delicadeza das bochechas. Tive de admitir que ela e a pintura já se pareciam, que meu aluno, mesmo sem a conhecer, tinha intuído a possessão, a queda, o meu desgosto, e, por mais que a ideia me desagradasse, talvez eu precisasse olhar o trabalho dele com um pouco mais de atenção.

Coloquei a aquarela na parede oposta à cama. Antes de dormir, olhava Adele pelas câmeras, via a imagem do quadro, as duas se fundiam; quando eu mirava o espelho tinha a impressão de que ia cair, de que a Adele estava lá dentro, me puxando com as mãos cheias de cicatrizes. As caixas de ovos já não abafavam a ladainha, ela conseguia se infiltrar, som, cheiro, gosto, azedo, escuro, tudo reverberava do porão, podre e úmido, e eu mal conseguia dormir. No toca-discos, colocava concertos barrocos na esperança de que a melodia pudesse me levar para outro lugar porque Adele era um buraco negro. Ela tinha cicatrizes e sangrava.

Acabei rasgando o trabalho do meu aluno. Cheguei à conclusão de que era medíocre. Na aquarela da Adele entre as chamas, ele só ressaltava elementos vulgares. Nas pinceladas, cada pedaço do rosto dela parecia gritar, e essa não era a Adele. Entendo a interpretação dele, não é qualquer um que consegue ver além da forma. Ou além do contraste. Os cinco sentidos são saídas fáceis, eu vivo dizendo isso em sala de aula. Mas os jovens não ouvem; parece que ouvir é uma habilidade que só se ganha com a idade.

É que ele não viu a da Adele com os olhos apertados. Ele não sentiu a Adele, o horizonte branco da pele deitado no tapete vermelho. Peguei a primeira foto que me mostraram dela. Quieta, pálida e indistinta, a minha Adele sob a luz do meio dia. Corri para o lixo e juntei os pedaços da aquarela das chamas, para entender tudo o que não era ela. O olhar agressivo, um limiar de grito, os braços desajeitados.

No dia seguinte, liguei o Noturno Op.9 e desci ao porão. Adele tomou o suco matinal e em trinta minutos estava apagada, daquele jeito que gosto, virada para o lado esquerdo, com a mão na orelhinha rosa. Passei a mão pelo seu pescoço. Dizem que a pele é a zona erógena mais poderosa do corpo, mas esse é um pensamento de gente pequena. Na verdade, a pele limita a imaginação. É preciso extrapolar a pele, superar a pele; se Adele estivesse acordada, eu falaria disso com ela, essas questões filosóficas me interessam muito e, apesar de ela não se esforçar, talvez entendesse uma palavra ou outra.

Não sei. Simplesmente olho para Adele e sinto que devo ir em frente. Coloco as luvas. A faca é como um pincel e, como um pincel, desliza… Extirpo as cordas vocais com cuidado; quando ela acordar, quero que sinta o mínimo de dor possível. Então, levanto as pálpebras, para cavar suavemente as órbitas com duas colherinhas de raspar maçã, até os globos oculares pularem pra fora. Com um alicate, tiro os dois indicadores de suas pequenas mãos.

Faz quinze dias que observo Adele estirada no tapete vermelho. Tive medo de que morresse, mas é impressionante como o corpo se recupera bem quando os órgãos fundamentais – cérebro, coração, pulmões –  são preservados. Ela abre a boca, move o nariz, franze a testa, e estou começando a decifrar essa nova linguagem.

Hoje de manhã, passei a mão pelos cabelos de Adele e ela virou a cabeça para o lado, pressionando delicadamente o rosto contra a palma da minha mão, como um gato. Tive medo de que me mordesse, os dentes! Esqueci dos dentes!, mas só senti duas lágrimas gordas escapando das órbitas vazias dela. Foi a primeira vez que ela quis me tocar.

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Anita Deak é editora de livros na Conrad e na Companhia Editora Nacional. Seu romance de estreia, Mate-me quando quiser (2014), foi finalista do Prêmio Sesc de Literatura e teve os direitos comprados pela Maresia Libros, na Espanha. Recentemente, teve também os direitos vendidos para o cinema

 

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