Por Angelo Mendes Corrêa e Itamar Santos *

Fundadora da Cia. Teatral Damasco, a atriz Valéria Arbex volta à cena teatral paulistana com seu maior sucesso, a premiada “Salamaleque” (cena acima), escrita por Alejandra Sampaio e Kiko Marques, que também a dirigiu o espetáculo, ao lado de Denise Weinberg.

A peça, escrita a partir das cartas de amor trocadas entre seus avós maternos, os imigrantes sírios Nadime e Nicolau Arbex, nos anos 1930, recria a saga daqueles que construíram e deram nova face ao País durante as primeiras décadas do século XX. Leia a entrevista a seguir.

Como se tornou atriz? Minha formação como atriz teve início aos 14 anos, quando ganhei de minha mãe um curso de teatro, depois de muita insistência. Eu era muito tímida e via no teatro a possibilidade de me soltar e viver outras vidas, mais ousadas e perigosas do que a minha. Tive aulas durante dois anos com a atriz Nilda Maria, da geração da Célia Helena. Ela foi da luta armada e exilada durante a ditadura militar. Fiz a minha primeira escola aos 16 anos, com Marco Antônio Braz e Hélio Cícero. Chamava-se Pirandello e lá considero que foi o meu grande mergulho, ou seja, tive as melhores referências bibliográficas de cinema, teatro, artes plásticas etc. Lá, entendi o ofício do ator e tudo o que ele exigia para que fosse profundo e profissional. Em seguida, fui convidada pelo Marco Antônio para integrar o elenco de ‘Perdoa-me por me Traíres’, do Nelson Rodrigues, espetáculo vanguarda da década de 1990. Ficamos cinco anos em cartaz, e, concomitantemente, fiz o Indac, minha segunda escola, onde permaneci durante quatro anos, com aulas diárias e tempo para experimentar e estudar nossos autores e novas linguagens da interpretação, com base no método do Antunes Filho.

O espetáculo “Salamaleque” se baseia na troca de cartas entre seus avós sírios, nos anos 30. Como surgiu a ideia de transformá-las num texto teatral e qual a origem do título? Sempre fui muito curiosa sobre o tema árabe. Perguntava para a minha avó Nadime tudo o que envolvia a sua vida na Síria. Gostava da musicalidade da língua, da música, da comida. Quando comecei a fazer teatro, ela faleceu e minha irmã Claudia e eu herdamos as 68 cartas de amor que ela e meu avó Nicolau trocaram durante o noivado. Essas cartas ficaram guardadas durante anos. Bem mais tarde, tive o impulso de tê-las como material para algo, que até então não sabia bem o que era. Em 2005, comecei a estudá-las e iniciei uma vasta pesquisa sobre política, economia, religião e imigração árabe. E também realizei uma pesquisa de campo com imigrantes, filhos e netos de árabes. Li muita coisa, histórias, estudos acadêmicos, enfim, juntei todo esse material e me dei conta de que tinha um projeto nas mãos. Daí, surgiu a ideia de fazer uma monólogo sobre a pesquisa que eu acabara realizado. A origem do título veio de um documentário que a dramaturga Alejandra Sampaio e eu assistimos. Nele, todos falavam o cumprimento ‘sallamu alaicum’, ou seja, que a paz esteja com você.  Salamaleque, que é uma palavra nossa ligada a cumprimentos exagerados é uma resposta a essa saudação em árabe.

Em “Salamaleque” você revive histórias emocionantes de seus antepassados, enquanto prepara alguns pratos típicos sírios. De onde veio a ideia de cozinhar e atuar concomitantemente? Durante a pesquisa que realizei constatei que a principal resistência de costumes é a comida. Muitas vezes, o imigrante não retorna para a sua terra, perde a língua nas gerações seguintes, mas a comida perpetua-se, é levada pelos filhos, netos e bisnetos. Por isso, decidi que a peça deveria acontecer dentro de uma cozinha, local de lembranças, já que alimentar está diretamente ligado ao afeto, ao amor. O público deveria se sentir como se estivesse na cozinha de alguém muito querido. E após o espetáculo, temos a comunhão ao redor da mesa, momento que proporciona uma troca riquíssima entre o público, com muitos relatos importantes.

O texto de “Salamaleque” é de Alejandra Sampaio e Kiko Marques. Houve alguma interferência sua na elaboração da escrita, devido à proximidade que você tem com a história? A maior parte da pesquisa é minha. Entreguei primeiramente para a Alejandra Sampaio, que fez o primeiro tratamento. Eram quase 70 páginas de material. Escolhi algumas histórias que gostaria que entrassem, alguns temas a serem desenvolvidos. E a Alejandra começou a escrever o texto. Ela sempre o enviava para eu ler e assim íamos conversando sobre o seu desenvolvimento. O Kiko fez o segundo tratamento, em cima do texto finalizado da Alejandra. Ele fez os cortes necessários e costurou, trazendo novos rumos à história. Foram dois momentos diferentes dos dramaturgos, cada um teve a sua fase de criação, porém mútuo respeito pela criação do outro. Sempre me enviavam o que escreviam e eu dava minhas opiniões, mas confiando de olhos fechados nos dois.

Qual foi a reação da sua família ao assistir “Salamaleque”? A comunidade síria tem prestigiado o espetáculo? Minha mãe, especialmente, ficou muito emocionada. Imagina, assistir diante de seus olhos a história de seus pais, por mais que tenha ficção também! Todos que conheceram os meus avós os reconheceram na encenação e ficaram tocados. Acredito que ‘Salamalaque’ é uma reverência aos meus avós e também a todos os imigrantes que chegaram ao Brasil, de todas as nacionalidades. A comunidade síria está indo muito mais nessa temporada. Temos um retorno enorme, em função do boca a boca que eles estão fazendo.

Elizete, sua personagem, tem uma ligação muito intensa com o passado. Não há nostalgia, a memória é retratada de maneira vibrante e alegre. O que você tem em comum com ela? O que tenho em comum com a personagem é a memória familiar, pois sempre tentei resgatar a historia da minha família. Entendo como qualidade necessária a um ator o estudo, a pesquisa, o interesse pelo outro, pelo ser humano e tudo o que o envolve. Não consigo dissociar a minha profissão do interesse pela vida e seus desdobramentos, camadas, vertentes, possibilidades e diversidade. Minha relação com a peça é totalmente emocional. Eu fico tocada todos os dias e o público tem grande participação nisso, ele está diante de mim, como testemunha e participante daquele dia tão importante, da celebração da Elizete. Muitas vezes eu me emociono como se fosse pela primeira vez e acho isso belo quando acontece. E deve acontecer, pois essas faíscas de emoção mantêm o espetáculo vivo para mim e para o público. Salamaleque é o que chamamos de um encontro.

Durante o espetáculo, você narra um triste episódio de perseguição pelos otomanos contra sua família. Poderia comentá-lo?  O império turco otomano dominou a Grande Síria, na época assim chamada. Foram quase 400 anos de domínio. Esse império perseguia os cristãos e usurpava toda sua produção agrícola. Durante a Primeira Guerra Mundial, no declínio desse império, os soldados invadiam as casas dos cristãos e levavam os homens, geralmente os pais de família, para lutar pelo seu exército. Os cristãos eram colocados na linha de frente e a maioria desses homens não voltava, pois morria na guerra ou de fome. Meu bisavô Antun foi levado, diante da esposa e dos cinco filhos pequenos. Tentou se esconder debaixo da cama, mas os sapatos ficaram para fora e o soldado percebeu e o levou. Nunca mais voltou.

Seus avós, Nadime Neif Name e Nicolau Antonio Arbex, vieram de Yabroud, na Síria. Que reflexão você faz sobre a atual situação do país de origem de seus avós? A situação da Síria é muito grave e complexa. A história de repete, meus bisavós imigraram por conta da guerra e de contingências políticas e religiosas. E hoje, muitos sírios estão sendo obrigados a deixar a sua pátria pelo mesmo motivo. A guerra na Síria é uma guerra dentro da guerra, são várias frentes lutando entre si pelo poder, além de vários países com interesses econômicos e políticos. A guerra é rentável, ela dá lucro para muitos. Há muita coisa que não chega até nós. E mais uma vez o povo é vitima, pois é obrigado a deixar as suas casas, a abandonar tudo e a fugir, deixando tudo para trás. Muitos sírios estão vindo para o Brasil, mas imigrar hoje é muito diferente do que era na época de meus avós. Refazer a vida no Brasil hoje é mais difícil, muito mais difícil. Mas acredito que  Salamaleque, mesmo falando da memória de uma família, joga luz e provoca a reflexão sobre o momento atual, contribui para desmitificar a imagem , muitas vezes equivocada, sobre o povo árabe,  associado-o à intolerância. O cidadão árabe, seja cristão ou muçulmano, só deseja viver em paz, em harmonia, cuidar da sua família em sua terra. E dela tirar o seu sustento.

Em 2010, você criou a Cia. Teatral Damasco. Pode nos falar sobre ela? A Cia Teatral Damasco, filiada à Cooperativa Paulista de Teatro, partiu da pesquisa das cartas de amor trocadas entre meus avós e do estudo aprofundado sobre a cultura árabe e todas as suas vertentes. Realizamos, desde então, ‘Poemas Encenados’, de Mahmud Darwish, ‘Em que instante Deus criou as Orquídeas?’, fragmentos de ‘Relato de um certo Oriente’, de Milton Hatoum e leituras Dramáticas de Gibran Kahil Gibran. A Companhia tem como objetivo fomentar o fazer teatral, valorizar a carpintaria do ator, a pesquisa da interpretação realista e do teatro ritualístico. Em 2012, ganhamos o Prêmio Funarte Myriam Muniz de Teatro, para a montagem de Salamaleque. Estreamos em 2013, sob a direção de Denise Weinberg e Kiko Marques. Em 2014, viajamos para alguns Sescs do interior de São Paulo e representamos o Brasil no Festival International du Théâtre Universitaire de Tanger, no Marrocos e ganhamos o Prêmio Zé Renato de teatro, em sua primeira edição, importantíssima conquista da classe teatral e grande passo para a Prefeitura de São Paulo. Graças a esse prêmio, voltamos com a temporada de Salamaleque este ano, que conseguimos realizar gratuitamente ao público.

Quais os projetos futuros. Pensa em levar a peça a outros estados? Nosso objetivo é ter vida longa com o Salamaleque, gostaria de emendar uma temporada com outra, estamos com o projeto aprovado no Proac ICMS e  até setembro podemos captar  recursos por meio dessa lei de incentivo. Assim, conseguiremos fazer outra temporada. Estamos na luta. Pretendemos viajar com a peça pelo interior e outros estados do Brasil. Não paramos na produção para que isso se realize. Nosso sonho é mascatear por diversas regiões do Brasil, e,  assim, ouvir, trocar e colher novas histórias que poderão dar frutos a um futuro espetáculo.

Em cartaz no Instituto Cultural Capobianco, em São Paulo, até 26 de abril. 

Fotos: Lenise Pinheiro

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Angelo Mendes Corrêa é mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP). Itamar Santos é mestrando em Literaturas Comparadas de Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP)

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