* Por Nilma Lacerda * 

Considerado um dos mais belos produtos arquitetônicos da arte moderna brasileira, o prédio do Palácio da Cultura, antigo Ministério da Educação e Saúde, foi concebido por uma equipe coordenada por Lúcio Costa, com presença de Oscar Niemeyer e consultoria do francês Le Corbusier. Azulejos de Cândido Portinari, o belíssimo Prometeu e o abutre, de Jacques Lipchitz, cravado na fachada da rua Araújo Porto Alegre, paisagismo de Burle Marx, a escultura de Celso Antônio, Moça Reclinada, no jardim do primeiro andar e o Monumento À Juventude, de Bruno Giorgi – nos jardins que dão para a rua Graça Aranha –, lembram a viagem audaciosa que foi o projeto modernista em nossa cultura, colocada ao alcance das massas por homens do porte de Gustavo Capanema, dentro do projeto de estetização da política do governo Getúlio Vargas.

Rio de Janeiro, 21 de junho de 2000.

Faz amanhã uma semana que, em cerimônia realizada no Palácio da Cultura pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), a seção nacional do International Board on Books for Young People (IBBY), prestou-se homenagem a Ana Maria Machado, ganhadora do prêmio Hans Christian Andersen, uma das láureas mais importantes no mundo literário, atribuída a escritores e ilustradores que se dedicam aos livros para crianças e jovens. Entre nós, um prêmio como esse ainda não recebe a devida atenção. Criança conta pouco, é verdade. Os que se ocupam de crianças são mais lembrados em discursos que em efetivas políticas públicas. Periodicamente, os governos anunciam planos nacionais x ou y, e neles não se costuma ver o investimento correspondente à infância, à juventude. O mote é violência? Plano para combater a violência, arrancar o mal pela raiz, violência se combate com violência, polícia bem treinada, verbas, presídios maiores e mais modernos.

A infelicidade não é toda a raiz da violência, mas é uma das mais seguras. É questão de bom senso ter presentes nos planos de combate às drogas ou  à violência alguns itens de investimento na construção de felicidade. Acredito nisso, e fico esperando. A decepção a cada vez não me impede de continuar a acreditar, e a trabalhar enquanto espero. As coisas mudam de lugar: aquilo que até ontem não se realizava hoje pode ser que aconteça. Foi ao que assistimos na semana passada, junto a afrescos de Portinari, aos ideais de um homem brasileiro moderno, fantasmas de um tempo de tiranias e aos arautos de lutas e construções na sociedade brasileira. Estamos de novo em face de um tempo propício, essa escritora corajosa, a força da leitura, a ressonância de uma palavra literária, a felicidade que se pode plantar, como um pé de milho ou de abacate.

Uma palavra literária que levanta preconceitos e os submete a investigações. Toma perguntas e procura responder a elas. Tira os fiapos de névoa dos sonhos e os traz à luminosidade das manhãs. Busca o desejo e escreve que é possível.

Ana Maria Machado. Ela me fez espiar para dentro, e caí de olho nas penas. Fiquei então bem do meu tamanho, num canto da praça, me imaginei bisa Bia, bisa Bel, mas não abri mão de ser Pedro e seu boi voador. Encontrei uma praga de unicórnio no caminho, que tinha também jararacas, pererecas e tiriricas. Então passarinho me contou que do outro lado tem segredos. Ouvi de longe cantarem bento que bento é o frade, não acreditei. Preferi entrar numa boa cantoria e ficar ouvindo histórias meio ao contrário, navegar nos mistérios do mar oceano, perder-me em meio a crianças alegres, inocentes e de coração leve. Coração leve? Sem coração – a tradutora devolve a palavra ao autor de Peter Pan. Sem coração, sem memória. Saber de cor é menos arte do afeto, que da repetição, e gravação.

É uma gravação, a palavra escrita. Sem ferro e sem fogo, na determinação do traço, na atenção a um código, a palavra que se escreve é faca a cortar o alimento para reparti-lo. A palavra de Ana foi semente e flor (são muitos os testemunhos de jovens já entrando nos trinta sobre a dívida de sonho, magia e ética, contraída na leitura de suas obras), foi adubo e amor, pão e queijo, lâmina e cabo, faca. (Orgulho, Ana, e pão!, eu diria à escritora que li para minhas filhas, para meus alunos da rede pública, para meus alunos da faculdade particular, da universidade pública, para mim própria.)

É faca a palavra de Ana. Costumo pedi-la, sempre que sento à mesa.

Esse é o cartão que não pude escrever para Ana, assim que soube da notícia do Andersen. Escrevo agora, de um lugar que vou fazendo público a seu tempo. E naquela noite, de encontro com muita gente querida e admirada, conheço Luís Carlos Santana, autor de A Noite Dos Cristais, Prêmio Orígenes Lessa e Prêmio Autor Revelação da FNLIJ. Conversamos e fico sabendo da profunda gratidão que ele tem para com a mãe, mulher analfabeta que deu pão e letra pra todos os seus meninos (não sei se teve meninas). Conheço Luís Carlos, converso com Ana Maria Rodrigues, diretora do Sistema de Bibliotecas do Município do Rio de Janeiro. Ana me traz notícias de deslocamentos, constatação de que as coisas, embora de forma lenta para nossa angústia, mudam efetivamente de lugar.

O pessoal da Baixada Fluminense tem vindo para a biblioteca de Irajá, ela me diz, para usar a Internet, passar e receber e-mail, fazer pesquisa. Ana Rodrigues vai citando outros exemplos, que ouço e não registro. Àquela altura, o vinho já soltava seus vapores, a palavra dos textos de Ana, da fala de Ana, vinha, plebeia e cigana, cristal despegado do lustre, rolando pelo salão, que perdia seus pilares, começava a marear. Ilustres, homens e mulheres de outrora, rendiam-se conosco ao fascínio do cais. Zarpávamos.

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Nilma Lacerda é autora de Manual de Tapeçaria, Sortes de Villamor, Pena de Ganso, Cartas do São Francisco: Conversas com Rilke à Beira do Rio. Professora da Universidade Federal Fluminense e também tradutora, recebeu vários prêmios por sua obra, dentre os quais o Jabuti, o Prêmio Rio e o Prêmio Brasília de Literatura Infantojuvenil.

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