* Por Mauricio Vieira *

Bucéfalo, o cavalo de Alexandre, suportava seu destemido dono nas frenéticas investidas de conquistador mundo afora.  Não reclamava.  Tinha curiosidade sobre os diferentes tipos de pasto que ia conhecendo ao longo das planícies e estepes helenizadas.  As éguas persas eram interessantes.  Já as hindus eram matreiras: ao perceberem o interesse do macho, aguardavam ele se posicionar para então darem coice.  Mas Bucéfalo entendia, pois ele mesmo havia dado certo trabalho. Não queria ser montado ou domado de jeito maneira.  Aquele cavalo das estepes dos Urais, presente de Filipe II da Macedônia ao filho, era presente de grego. Reza a lenda que tinha medo de sua própria sombra. Quem viu o filme do Oliver Stone sabe como Alexandre fez para o domar. Quem não viu pode ler no verbete da Wikipedia. Depois de morrer em batalha, Bucéfalo foi imortalizado por Alexandre na cidade de Bucéfala, no atual Paquistão.

De tantas andanças, a montaria de Alexandre disseminou seu material genético de garanhão reprodutor.  Sempre foi raça difícil de domar e adestrar, mas com um pendor por chefes de estado.  Os generais que repartiram o império após a morte de Alexandre também se encarregaram de manter os quadrúpedes ativos nas diversas guerras intestinas e nas fronteiras de cada domínio.  Herdeiros da estirpe imperial chegaram a colônias helênicas na Itália, e de lá para regiões do império agora romano, como a Hispânia.  Genitor, cavalo de César na conquista da Gália, era descendente daquele que temia sua própria sombra. Incitatus, nomeado senador por Calígula, havia sido trazido da Hispânia.  O impetuoso quadrúpede chegou a ser considerado para o cargo de cônsul pelo não menos impetuoso imperador.

A raça perdurou, apreciada por conquistadores, como Carlos Magno e Carlos V.  Uma das vertentes foi levada à América por Cortez, e a prole se espalhou pelas pradarias.  O general Custer os adorava, pois eram fortes e velozes.  Os Cheyenne também, pelas mesmas razões.  Quando as tribos lideradas por Crazy Horse trucidaram Custer e seu regimento em Little Bighorn, o único sobrevivente da cavalaria foi um equino chamado Comanche.  O exército o aposentou com todas as honrarias.  Nunca mais foi montado, e adorava beber cerveja.  Seu funeral foi repleto de pompa e hoje Comanche está empalhado num museu.

Destino menos feliz teve Hans, o cavalo esperto.  Seu professor, o alemão Von Osten, dedicara-se a ensina-lo a realizar operações aritméticas.  Hans na verdade aprendera a ler a linguagem corporal do dono para saber quando tinha de parar de bater a pata ou inclinar a cabeça e assim dar a resposta esperada.  Apesar do sucesso, o exército do império alemão, talvez por não prezar tanta esperteza num equino, acaba por alistar Hans para a I Guerra Mundial, e este morre em combate em 1916.  Seu fim foi um pouco diferente do de Comanche, sua carne tendo sido consumida pela tropa faminta nas trincheiras.  Hans talvez tenha sido o último descendente direto da linhagem de Bucéfalo, que chegou muito alterada a nossas paragens verdejantes.

O alazão tupiniquim suspeita-se seja um cruzamento do cavalo imperial com a linhagem de Rocinante, o cavalo de Don Quixote, trazido por camponeses espanhóis para a Plata e depois cruzado com raças já aculturadas pelos portugueses.  Ainda assim, o pangaré traz o mesmo traço genético do seu nobre ancestral, de ter medo da própria sombra, e detestar ser montado, exceto por gente bélica.  É muito apreciado pelos militares brasileiros, que apaziguam a fobia do quadrúpede instalando viseiras.  Dado o terreno vastamente irregular do ambiente local, o cavalo exacerbou alguns dos traços do ancestral.  Chucro, duro para galopar, não trota, relincha à bel prazer, dá coice à torto e a direito, morde, e adora empinar para derrubar seu cavaleiro.  A fobia de sombra fez de sua mente um matagal de conspirações e paranoias.  Parece até que viu a mula sem cabeça.  Por isso relincha de aprovação quando queimam a floresta para fazer pasto.  Atesta-se que um expoente atual da raça, Roçonalbo, possui três rebentos que não fogem às características do progenitor.  Juntos, se cooptados pelos quatro cavaleiros do apocalipse, não fariam feio: cumpririam a missão com louvor.  Eles eram muitos cavalos, mas esta cavalgadura é nossa.

Mauricio Vieira é poeta, autor de Manual onírico de jardinagem

Na ilustração, Alexandre, o Grande, e Bucéfalo.

 

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