Por Raimundo Neto *

São Paulo não tem nada de santa. O que alicerça a glória regente é sangue, suor, dinheiro e a inescrupulosa desintegração de identidades; milhares de nãos engolidos pelos gritos de progresso e lucro; nomes que foram mastigados pela ferocidade impiedosa dos homens donos das próprias conquistas; debaixo da glória e rica invencibilidade de tudo que é aço e concreto, que sobe e não cai nunca, está a coragem de cada homem e mulher que não sabe mais seu nome, que pensa no passado como a única chance de continuar a ser o mesmo. O futuro engoliu a tua língua? O futuro engoliu o que somos, senhor!

A fuga do pai, o desespero alucinado da mãe, a loucura dos dias seguintes, tudo aconteceu muito rápido. Palavras e afetos ancestrais desfolharam-se assim que os pés de Raimundo tocaram São Paulo. Os olhos cegos do céu abriram sua lucidez viva e pestanejaram rajadas de noite sobre ele, que ouvia a voz de centenas de poesias e gritos de revolução ecoar turbulenta na incompreensão das ideias; a loucura parecia-lhe tão impossível, mas, agora, a insanidade do pai e da mãe são uma herança, ele sabe; ele é um homem fruto das dores incuráveis de um amor sacrificado. A voz que ricocheteia nos cantos escuros do seu entendimento é a única certeza que ele tem sobre o adiante.

Tu fez certo ao sair de lá. A vida é um processo, e recomeçar é o passo mais importante, antes de tudo terminar. A vida vai além da mãe. Teu pai é ausência. E eu sou teu poema preferido. Minha palavra tem voz, corpo e vida. Começa a escrever sobre esta vida, Raimundo. Começa por ti, por dentro, encontra a palavra que mora no fundo, onde não há luz, a última palavra nascida da tua primeira dor. Todos os sumiços anteriores ocupam seus dias; lembranças e faltas tornaram-se adereços híbridos da maldição que o tornaria monstro e espanto.

Torquato chegou agarrado ao anoitecer, como se o breu do tempo quente fosse esconderijo. Os olhos desenhavam duas luas eclipsadas anunciando alguma catástrofe sorrateira. Uma sombra dentro de um foço profundo imitando ecos que não pediam socorro. Talvez ele fosse um espírito que profanou a luz sagrada de passados remotos no Piauí. Raimundo sabia que o tremor que possuía as palavras entaladas no corpo não era medo. Talvez Torquato quisesse sair da prisão daquela aparência etérea e viver seus dias de paupéria. Qual a palavra mais importante da tua vida?

Aquilo era real. As ideias esfaimadas daquela presença sombria e antiga engoliram as humanas cognições fragilizadas de Raimundo. Descubra a palavra mais importante da tua vida. Deixe-a ir até o fim de ti. Entre eles, o impulso de explodir num grito que superaria aquele começo de noite (um véu violeta vestia de núpcias o céu modorrento). Raimundo costurava dois movimentos: engolir o grito e modular o tom dos pensamentos, repetidas vezes até que uma colcha resistente de sabedoria cobrisse a invalidez de todas as suas renúncias.

Não havia ninguém no quarto além de Raimundo e Torquato. Sacrifício, pesar, desespero, amor, qual a palavra mais importante da minha vida? Um quarto vazio no centro de São Paulo anunciando um não-lugar impossível de ser ocupado. O amor da mãe foi a maior loucura da minha vida. É essa a palavra mais importante? Raimundo segurava um caderno velho de anotações. Do lado de fora, uma sirene emputecida gritava ameaças a tudo que era escuro, sujo e invisível. Ele temia que o mundo começasse a terminar pelo que escapava do corpo, em lágrimas. Continuava escrevendo. Cada palavra, uma hora. Cada folha rabiscada, uma vida.

Torquato acena com a cabeça e avisa que precisa caminhar pelas ruas apinhadas de mesquinhez. Uma correnteza voraz de agonia e pressa, descuido e agressão, corre pelas ruas. Quero encontrar meus escritos. Aqui não tem espaço para o que somos, Torquato. Saem catando livrarias e sebos, ruas imensas, percursos sem fim. O senhor conhece Torquato Neto? Tem algo dele aqui? Não, não, não, não, não. Os nãos ergueram-se a cada ausência recobrada. A cada passo dado, lembranças feriam o entendimento de Raimundo. Uma mãe que optara pelo sumiço fez nascer uma dor aguda dentro da culpa, como se a amargura inicial de desejá-la longe, apesar do amor, fosse responsável pelo nascimento de uma amaldiçoada desistência. Escreva. E se for tudo mentira? Pra que verdade maior que essa? E o que tu pretende com a escrita? Ser feliz de um jeito impossível. Caminharam até lugares impossíveis. Uma palavra dentro da outra, mãos dadas, passo a passo. Não sei mais para onde ir, não sei o que escrever, Torquato. A escrita não tem fim, Raimundo. Só a vida acaba; a palavra, nunca.

A vida continuou em frangalhos; o sumiço da mãe foi um golpe calculado; ele sabia que isso aconteceria algum dia; tantos recados berrados aos quatros cantos da vida sufocada, tantas ameaças de sumiço branco, sem rastros. Tudo é ausência. Tu é uma maldição, como teu pai, um maluco sem caráter. Ele começou a ver apenas os pedaços de si onde há apenas desastres. Um bicho ainda canta prenúncio de fim do mundo no peito. É assim que se começa a morrer: levando consigo o peso dos outros no peito.

Ele enfia as palavras que ouve no pulso, deixando o sentido delas vazar até o fim da linha. Escreve remorso ao contrário e espera que de um modo repentino e sagrado uma santa palavra apareça, de qualquer lugar, e renove suas forças. Se um exército de mil anjos tortos, com palavras em brasa, cantando poemas de Torquato Neto, marchasse junto a ele, pelas ruas de São Paulo, fortes e lúcidos como caneleiros vibrando em sol a pino, derramando gritos de bravura, manchando com palavras de salvação a terra alheia sem dono, Raimundo não seria mais o mesmo. Torquato, só agora descobri o que é o fim: é quando o amor é capaz de desistir do que não muda. A minha palavra não é mais o meu lugar preferido. Estou desabrigado de mim.

Torquato, e se eu nunca souber qual a palavra mais importante da minha vida?

– Torquato?

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Raimundo Neto é escritor. Colabora com a São Paulo Review 

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