A pequena Rutka

guee

Por Jacques Fux *

Gostaria de apresentar-lhes Rutka Laskier. Essa menina polonesa de apenas quatorze anos viveu em Bedzin e sua história ficou escondida (quase perdida) por sessenta e cinco anos. Hoje, dia de lembrança e tristeza, lembro-me dela e de seu comovente diário.

Rutka vivia no populoso Gueto de Bedzin em 1943. Tinha seus amigos, seus amores, seus desejos e seus muitos medos. Através da arte da escrita, tentava transcender e esquecer a dura realidade que assombrava os muitos judeus de sua cidade. Rutka, diferentemente da conhecida Anne Frank, estava consciente do seu destino e da existência do extermínio em Auschwitz.

Mas Rutka queria viver. Quatorze anos era muito pouco tempo vivido e por isso se apressava em sentir tudo, de todas as maneiras. E foi assim, nessa urgência de sentimentos, que escreveu uma das partes mais comoventes de seu diário, no dia 6 de Fevereiro de 1943: “Algo se partiu em mim. Quando passo ao lado de um alemão, fico completamente tensa, não sei se de medo ou de ódio. Fico com vontade de atacá-los, atormentar suas mulheres e filhos, que açulam contra nós os seus cãezinhos de salão. Bater neles e enforcá-los com força, cada vez mais força. (…) Isto é uma coisa, mas agora há outra coisa. Desconfio que despertou em mim a mulher. O que eu quero dizer é que ontem, quando eu estava deitada na banheira e a água acariciava meu corpo, ansiei por ser acariciada pelas mãos de alguém… Não sei o que foi aquilo, nunca senti nada parecido antes…”.

Amor, ódio, prazer, dor, morte, vida. Tudo isso acontecia enquanto a população judaica polonesa, a segunda maior comunidade do mundo antes da Segunda Guerra Mundial, ia rapidamente desaparecendo.

A História e relação entre a Polônia e os judeus é uma das mais interessantes e controversas questões. Desde a criação desse país no século X, aproximadamente em 966, já existiam relatos de viajantes e geógrafos atestando a existência de comunidades judaicas naquela região. Em 1897, na cidade de Rutka, 80% da população era judia e em 1939 o número era de 45%.

Rutka, essa menina-mulher que vivia a ardência de seu corpo e sentia odor e proximidade das câmaras de gás, até tentou se convencer de um amor. Ao longo de suas poucas, mas lindas páginas, descreveu a sua paixão e ódio por Janek. Aquele que de forma bem psicanalítica despertava o desejo de Rutka, quando estava ausente, e exaltava sua repulsa, quando muito presente. Assim escreve Rutka: “Tento me persuadir de que não sinto nada por Janek e, no entanto, sinto saudades dele e, algumas vezes, sofro por não vê-lo ou não ouvir sua fala. (…) eu decidira não pensar mais nele, mas ele se impõe permanentemente em meus pensamentos. Será que estou realmente tão enamorada dele? Será que é isto o que chamam de amor?”.

“Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso da loucura” já dizia Riobaldo. O belo Diário de Rutka mostra essa tentativa de não enlouquecer diante dos terríveis acontecimentos. “A tristeza toma conta de mim quando penso nas multidões destinadas à morte. Ah! Sim, aqui pode se enlouquecer quando se lembra de tudo”. Assim, desejando o desejo de sentir desejo, Rutka cria uma relação amorosa com Janek no gueto de Bedzin e se desperta para sexualidade em meio ao fim inexorável em Auschwitz.

Por sessenta e cinco anos a história de Rutka esteve escondida. A história de uma menina que ansiava viver e amar foi recuperada graças à revelação do seu diário, em 2007, guardado por uma amiga polonesa durante todos esses anos. Esse diário nos mostra um lado que muitas vezes esquecemos de contar, já que nos preocupamos com os números gigantescos de mortos que a Shoah produziu. Se dez milhões de pessoas morreram exterminadas (sem contar outros tantos que morreram em decorrência da Guerra), sendo seis milhões de judeus, perdemos também milhões (ou talvez até mais) relatos e histórias individuais. Relatos de amor, de briga, de sedução, traição e das inúmeras comédias da vida privada. Aqui, em meio ao terror e próximo ao inferno que uma vez ficou conhecido como Auschwitz/Birkenau, uma criança, madura para sua idade, relata comoventemente sua ânsia por viver, amar e sentir tudo, de todas as maneiras, que se acabou infelizmente nas câmaras de gás.

Lembrar a pequena Rutka hoje é não deixar triunfar o sonho nazista do memoricídio.  É homenagear individualmente os milhões que desapareceram.

*

Jacques Fux venceu o Prêmio São Paulo de Literatura 2013 com o livro Antiterapias , além do Prêmio CAPES de Melhor Tese de Letras/Linguística do Brasil em 2011.  É pesquisador visitante – Universidade de Harvard (2012-2014), pós-doutor em Teoria Literária – Unicamp e pós-doutorando em Literatura Comparada – UFMG