‘Distrito federal’: rapsódia excêntrica de Luiz Bras

Distrito federal - quarta capa

Por redação *

Distrito federal, novo livro de Luiz Bras, é uma rapsódia pós-moderna sobre a política e os políticos brasileiros; sobre demagogia e corrupção, eleições fraudadas e impeachments; sobre ambições públicas, vícios particulares e os meandros insólitos de nossas instituições democráticas; enfim, sobre sociologia, História, teoria dos jogos e teoria do caos, utopias e distopias, cibercultura e realidade virtual, filosofia da linguagem, cultura de massas e cultura popular (folclore).

A rapsódia é protagonizada por um ciborgue assassino que só extermina políticos corruptos, no Distrito Federal. Esse serial killer é na verdade um homem com próteses eletrônicas, possuído pelo espírito mítico de um curupira. A história se passa num futuro próximo e o narrador é uma inteligência artificial incorpórea, que acompanha todos os passos do assassino pós-humano.

Esse protagonista divide a cena com muitas outras personagens imaginárias (figuras e entidades do folclore brasileiro e das religiões africanas e indígenas) ou de carne e osso (deputados, senadores, prefeitos, governadores, ministros, barnabés). Passado, presente e futuro, cibernética e demonologia, humanismo e pós-humanismo orbitam o centro dos principais conflitos sociopolíticos da trama.

O principal elemento de Distrito federal são alguns escândalos políticos dos últimos vinte anos, reconfigurados literariamente. Os minicapítulos são feitos de parágrafos muito curtos, de poucas linhas, às vezes de poucas palavras. Há momentos em que o texto parece um extenso poema narrativo. O discurso indireto livre e o fluxo de consciência coordenam toda a rapsódia.

Leia, a seguir, trecho e veja as ilustrações que Teo Adorno fez para o livro, que está sendo lançado pela editora Patuá:

Distrito federal - ilustracao 05

Distrito federal

Rapsódia de Luiz Bras

“O curupira saiu do cerrado pouco antes do pôr do sol.

Do que sobrou do cerrado.

O curupira saiu do cerrado, olhou você bem fundo nos olhos e invadiu teu corpo, tua mente.

Agora é ele quem está no comando.

Sei que você não lembra, não sabe como foi que aconteceu.

Vou refrescar tua memória pela décima terceira vez.

Num domingo à tarde você foi com os amigos visitar a última ilha de clorofila no planalto central.

Distrito federal - ilustracao 02

O restinho de cerrado cercado de edifícios por todos os lados.

As cidades ocuparam o mundo inteiro.

Teus amigos chegaram bêbados e partiram mais bêbados ainda.

Você também chegou bêbado, mas assim que o curupira disfarçado de fumaça invadiu tua boca você ficou sóbrio & sereno.

Na viagem de volta teus amigos estranharam teu silêncio.

O carro trepidava a quase duzentos por hora, todos gritavam & gargalhavam, menos você.

Quando a maioria ficou quieta, cansada de extravasar, quase pegando no sono, você finalmente disse:

Encontrei um curupira rondando nosso carro.

Distrito federal - ilustracao 03

Um dos amigos, o que estava ao volante, procurou você no retrovisor e perguntou o que era um curupira.

Uma criatura do cerrado, um demônio antigo & vingativo, você explicou.

Eu não vi nada, alguém mais viu?

Ninguém mais tinha visto porra alguma.

Demorou cinco segundos pra que todos caíssem na risada.

Um demônio antigo & vingativo, que delírio do caralho.

Pararam pra mijar no acostamento, indiferentes às câmeras de vigilância.

Já era noite, só você não saiu do carro.

Voltaram pra rodovia.

Teu amigo acendeu outro baseado fino & longo, que logo chegou a você.

Você dispensou.

Distrito federal - ilustracao 04

Alguém deu corda:

Como era esse demônio?

Você o descreveu, depois aguentou firme a nova onda de piadinhas.

O amigo ao volante deu uma boa tragada e fingiu estar irritado:

Se o pestinha tivesse arranhado a pintura ou furado um pneu, eu comia o cuzinho antigo & vingativo dele.

Outro amigo brincou com um canivete:

O filho da puta foi esperto em fugir para o mato.

Distrito federal - ilustracao 01

Ele não fugiu para o mato, você explicou.

Se ele não entrou no mato, por que a gente não viu o merdinha?

Pouco antes de vocês chegarem o curupira falou comigo, nós conversamos.

Ele estava cansado & triste.

Era o último da espécie.

Como vocês se sentiriam se uma civilização implacável chegasse e devastasse nossas cidades, exterminasse todo mundo?

Chega de palhaçada, teu amigo resmungou.

Outro amigo parecia estar acreditando:

Você viu mesmo esse demônio, falou com ele?

Nós conversamos.

O curupira apareceu na minha frente e disse que ele era o último, que todos os outros estavam mortos.

Ele olhou fundo nos meus olhos e disse:

Agora eu quero vingança.

Ele chegou bem perto e disse:

Quero suas meias e seus sapatos.

Eu entreguei as meias e os sapatos e ele ordenou:

Passa pra cá a cueca, a camiseta e a bermuda.

Eu entreguei e ele mandou:

Agora venha comigo e veja o que vai acontecer.

O curupira entrou no carro e agora está aqui.

Um amigo ainda muito bêbado & chapado disse:

Não estou vendo nenhum curupira aqui.

Você pegou o canivete do teu amigo e a chacina começou.”

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