Charles Kiefer e a sua falsa autobiografia

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Dia de Matar Porco, do gaúcho Charles Kiefer, é uma falsa autobiografia: traz a história de um advogado que repassa e balança sua vida em meio a reflexões sobre a literatura. Ariosto Ducchese escapou de uma morte por hemorragia depois de sangrar por dias. No quarto do hospital, ele vê sua mãe, já falecida — o fantasma dela ou efeito dos medicamentos? Com isso, ressurgem também todas as memórias e assombrações da vida no campo deixada para trás há mais de trinta anos, as relações familiares, os rituais — incluindo o dia de matar porco, quando os meninos se credenciam para as atividades da vida adulta.

Ariosto, hoje advogado bem-sucedido, refaz seu caminho de volta a Pau D’Arco, sua cidade natal, relembrando todos os tipos de emprego, as moradias e as experiências, até chegar e se estabelecer em Porto Alegre. Ele reconta a história da sua vida — para ele mesmo, e para seus leitores — e examina questões literárias, filosóficas e culturais, retornando a um ambiente de brutalidade, mas de muita união, onde se forjou o homem nas veias da terra.

Dia de matar porco é o primeiro romance publicado por Kiefer depois de um hiato de 12 anos sem lançar uma narrativa longa inédita. Leia trecho a seguir:

Toda narração, e especialmente a autobiográfica, como se pretende esta minha tentativa, é uma impostura. Uma coisa é o fato; outra, a sua construção linguística. O esfaqueamento de um porco é diferente da leitura e interpretação que se pode fazer sobre o esfaqueamento de um porco. No ato real, que depois de acontecido recolheu-se a sua eterna facticidade, houve apenas um porco, uma faca e um jovem insciente ainda do corte que a linguagem faz sobre o Universo. O porco era gordo, cevado havia meses, e forneceu proteína abundante para a família inteira por muitas semanas. A faca era afiada, de folha longa e ponta fina, e tinha um cabo de chifre de boi. Era usada para sangrar, raspar o pelo e cortar os nacos de carne branca. E o adolescente era imberbe, e passava os dias e as noites a sonhar com uma vida diferente, vida que ele só sabia existir pelas ondas da Rádio El Mondo, que lhe traziam devaneios e o inócuo conhecimento não vestido de experiência.

Hoje, do alto desta colina artificial que é o edifício onde moro, o porco, a faca e o adolescente, transformados em cena literária, recobrem-se de inúmeras camadas de subjetividade. A minha, que conto esta história, inepto e reticente; a do leitor, que acrescenta a ela toda a sua carga de experiências, temores e desejos recalcados; e a da própria linguagem, que não é capaz de descrever com precisão sequer o voo de um colibri, quanto mais o sangramento de um porco. Nessa hora, todo memorialista reconhece a superioridade do teatro e do cinema sobre a linguagem escrita na tentativa de reproduzir o real. A cena de minha iniciação no mundo dos machos seria muito mais eficiente se convertida na filmagem de um ator fazendo de conta que ingressasse num chiqueiro e esfaqueasse um porco. Mesmo assim haveria muito espaço para a subjetividade do diretor, que filmaria deste ou daquele ângulo, do iluminador, do fotógrafo, do ator, e até do porco, porque na cena real não houve os holofotes e nem a movimentação de um set de filmagens. Mas o resultado para o espectador seria mais impactante, pois ele estaria vendo um porco esfaqueado.

E como vejo eu o passado agora? O que devo contar? Que recortes fazer? Qual é o ângulo mais eficiente? Qual é a luz mais reveladora? E quais as melhores sombras de ocultação?

Escrever é como matar um porco. É preciso ferir o coração do real, submetê-lo a nossa vontade, dizer a ele o que ele foi, e depois esquartejá-lo, expor as suas vísceras, valorizar este ou aquele pedaço, transformar a pele e as mantas de gordura em torresmo, e os miúdos em salsichas e salames.

O porco vivo é majestoso, mesmo quando se movimenta na lama, mesmo quando pisoteia os próprios excrementos, quando fuça a lavagem e mastiga o que lhe cai na boca. Vivo, é uma máquina fabulosa, de arquitetura ímpar e de vigor extraordinário. Morto, se converte em filés tristes, costeletas desnudadas, pedaços exangues dependurados nos açougues, nos supermercados, lembrança distante do bólido que foi um dia.

Seria possível recuperar o sangue, os pelos, as patas, o rabo e as vísceras e reconstruir o porco? A vida-porco é também irrecuperável. A narração, com suas técnicas, com seus truques, esforça-se por imitar o porco, refazer fragmentos da vitalidade antiga, e só consegue produzir outro porco, outra vida.

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Dia de Matar Porco, de Charles Kiefer (editora Dublinense)