Diálogo à noite

* Por Corinne Klomp *

Ele: Diga-me Gisèle Tonnelle, você se chama mesmo Gisèle Tonnelle? Ela: Como se fosse possível você se enganar…

Ele: Por que você quis me encontrar na rua do Vinagre?

Ela: Pois é aqui que tudo começou. Enfim, recomeçou. Foi aqui que eu decidi acreditar de novo, escolher um lado para sempre, ir explorar o campo das possibilidades, sempre em frente, sem nunca mais olhar para trás. (pausa) Tinha esta varanda, no quinto andar deste apartamento aqui, na rua do Vinagre, em Chaumont, na França. Eu tinha chegado há pouco, como diretora adjunta de uma filial bancária. Logo depois da minha separação com o Louis.

Ele: “Separação”! Você está sendo muito gentil com as palavras. Gentil, tipo tonta, até mesmo burra. O Louis tinha te largado, depois de sete anos de vida em comum, de um dia para o outro, pela tua melhor amiga. Você ficou como lixo!

Ela: Não. “Como lixo” não. Eu “era” lixo. Eu tinha trinta anos. Eu tenhotrinta anos. Tem esta varanda. Na cozinha. Eu abro a porta envidraçada, vou até a varanda, ao ar livre, no frio.

Ele: Gisèle interpretando Juliette. Bem comovente!

Ela: Embaixo não tem nenhum Romeo. Há apenas um pátio impessoal, cinza e triste, com umas latas de lixo coloridas para reciclagem e para diversão dos raros ratos que se aventuram lá. Estou me debruçando. Meu Deus, como é alto! Cinco andares, mesmo em prédios modernos com pé direito super baixo é muito alto.

Ele: E depois?

Ela: Estou me debruçando. Sobre o parapeito. Sinto a minha barriga, os meus pneuzinhos – nesse período comia muito chocolate, muito… – então os meus pneuzinhos estão se espalhando pelo metal gelado. Está muito frio. Ainda estou me debruçando quando de repente… toca a campainha.

Ele: Era ele?

Ela : É ele, sim.

Ele: O amor?

Ela: O amor mesmo.

Ele: Mentira! Em Chaumont, Chaumont na Champanhe, no quinto andar de um prédio moderno e sem alma, numa cidade para onde você veio para bancar a esperta sem escrúpulos!

Ela: Sem escrúpulos sim, pois nessa época eu era lixo, não esquece.

Ele: Então numa noite fria, de inverno suponho, é mesmo o amor que está

batendo na porta. E você consegue ouvi-lo bater?!

Ela: Ele fica batendo por muito tempo, o amor é do tipo insistente. Quando está batendo ele quer que todo mundo escute: os sonolentos, os surdos e meio- surdos, aqueles que estão debaixo do edredom, no fundo do apartamento, aqueles que estão com a cabeça enfiada no fogão a gás, ou aquelas que estão se debruçando no parapeito da sacada. E não é uma noite de inverno, mas uma noite de outono. No dia 11 de novembro. Uma noite de trégua. Nesta noite eu enterro as armas, eu faço as pazes comigo mesma.

Ele: Vamos lá, o amor está batendo e você está festejando o fim da guerra. E depois, você faz o quê?

Ela: Eu, minha barriga e meus pneus saímos da varanda. Eu abro a porta. Ele está lá na minha frente. Ele está sorrindo. Mora no terceiro andar, ele diz. Somente por uns dias, ele sorri. Faz parte de um festival de autores de teatro, ele acrescenta. De autores errantes de outono, ele sorri. Errantes de outono, ele repete.

Ele: Você está sorrindo por quê?

Ela: Pois estou pensando na maneira dele de pronunciar “errantes”. Ele era, ele é brasileiro. Você sabe disso? Os brasileiros “forçam” o erre quando tem dois dentro de uma palavra para criar um som raspante. Ele era um autor errrrrante. É isso! (pausa) Vamos fazer a cena de novo?

Ele: Não quero atuar.

2

Ela: Mentira! Você faz isso o tempo todo, você adora.Ele: O que vou ter em troca?

Ela: Eu mesma.

Ele: Isso já tenho. Quero algo mais.

Ela: Foda-se. Ou eu ou nada, ponto.

Ele: O seu brasileiro de Champanhe, como se chama?

Ela: Raoni.

Ele: Isso não é um nome!

Ela: É, sim. Um nome que significa jaguar furioso. Um nome de cacique indígena.

Ele: Gisèle e Raoni. Raoni e Gisèle. Com um título assim, isso nunca vai bombar no cinema.

Ela: Mas na vida real deu três bebês, três crianças grandes e bonitas, seu idiota! Raoni e eu estouramos a bilheteira com as nossas noites de amor. (pausa) Vamos fazer a cena de novo?

Ele: Estou batendo na porta. (ele bate)

Ela: Vou abrir. (ela abre)

Ele: Boa noite. Desculpe incomodá-la, eu querrrrria…

Ela: Não, se diz “queria”. Aqui não precisa forçar o erre. Só faz isso quando tem dois. Quando tem um, você o enrola, como na Itália. Simplesmente.

Ele: Eu não entendo nada dessas histórias de sotaque ítalo-brasileiro. Estou de saco cheio. Você não podia encontrar um rapaz nativo de Champanhe, de uma safra excepcional?

Ela: Encontrei uma “meia-safra”, isso me deu um novo impulso. Por favor volte ao seu papel.

3

Ele: Não é fácil, pois você fica interrompendo. (ele atua) Boa noite, desculpe incomodá-la, eu gostaria…

Silêncio.

Ele: Porra, você não diz nada?

Ela: Bem, eu estou prestes a me suicidar. Eu vejo esse cara na minha frente, com uns sóis tatuados nos braços. Não digo nada. É a tua vez agora.

Ele: Bom. (ele recomeça) Eu moro aqui, no apartamento de baixo, somente por uns dias. Eu queria… (ele para) A propósito, o que ele queria?

Ela: Azeite.

Ele: Azeite? Na rua do Vinagre?! Você está tirando sarro de mim, Gisèle Tonnelle?

Ela: Estou sim, seu urubu maldito.

Ele: O que ele queria?

Ela: Uns limões. Eu juro, é verdade.

Ele (recomeçando a atuar): Bom dia, desculpe incomodá-la…

Ela (interrompendo): Boa noite. Ele disse “Boa noite”. Era noite. Você tem que acompanhar mais a conversa!

Ele: Merda! (ele recomeça) Eu queria uns limões. (pausa) Para fazer uma caipirinha.

Ela: Como é que você sabe disso?

Ele: Do quê?

Ela: Que ele queria fazer uma caipirinha.

Ele: Não sei porra! Isso é típico dos brasileiros né? Quando precisam de limão nao é para fazer um café!

Ela: Ok. Então eu falei…

Eu falei: “Vamos nos amar tanto”. E depois eu desmaiei. Acho que ele me segurou nos braços. Depois… eu só acordei ontem.

4

Quer dizer quarenta anos mais tarde, no dia do enterro dele. No cinema a gente chama isso de elipse.

Ele: Foi uma elipse longuíssima.

Ela: Foi. Riquérrima também. E que só interessa a nós dois.

Ele: E você marcou comigo para hoje à noite, aqui mesmo. Você vai torcer para o milagre acontecer de novo?

Ela: Não tinha nada a ver com um milagre. Era a vida. Ela voltava a fazer sentido e com isso ela me colocava de novo sob a sua asa. A Giselinha. E nesta noite, eu quero você, somente você, neste andar deste apartamento na rua do Vinagre…

Ele: Em Chaumont, Chaumont em Champanhe, na França.

Ela: Exatamente. Eu preciso da sua ajuda. Para abrir a janela da varanda. Eu tenho 70 anos e as mãos cheias de artrose.

Ele: OK. Estou abrindo a janela. Eu não tenho artrose.

Ela: Você não tem mão, você não tem nada.

Ele: E agora?

Ela: Eu vou para a varanda. Vou cumprir a minha promessa.

Ele: No dia certo, entendo. No dia 15 de novembro de 2054. Às 18h em ponto. Obrigado.

Ela: Não estou me lamentando. Não estou gemendo.

Ele: Por piedade, não! Obrigado por me poupar disso. Eu não aguento mais essas negociações de última hora.

Ela: Não estou negociando. Eu vou embora mesmo. Estou me debruçando no parapeito. Não tenho mais barriga, nem pneuzinhos. Não sinto mais o frio glacial do metal nos meus ossos.

Ele: É a vantagem de envelhecer, veja só.Ela: Eu não tenho medo.

5

Ele: De verdade? Nadinha?

Ela: Nadinha de nada. Não tenho medo. Amei.

Ele (suavemente): Pronta? Tenho outros… clientes para visitar, antes do fim da noite.

Ela: Já estou com uma perna para fora, não vou demorar muito. Uma última lufada de ar fresco, e vou pular.

Silêncio.

Alguém bate na porta…

*

Corinne Klomp é autora francesa e mora em Paris, França. Escreve peças de teatro, roteiros (televisão e cinema), e ficções para a rádio francesa France Inter. Faz parte do Conselho de Administração da Sociedade de Compositores e Autores Dramáticos (SACD) do seu país. Tem grande paixão pelo Brasil e pela língua portuguesa. Começou a aprendê-la ao fim do 2014, depois de ter dado sua segunda oficina de roteiros, no Rio de janeiro, no Festival Varilux do Cinema Francês. Desde então escreve crônicas e contos em português

Tags: