* Por Godofredo de Oliveira Neto *

Parecia um seminário  sobre saúde e acidentes no ambiente de trabalho. Ambulância do SAMU, viatura da PM, vistosa van  de plano empresarial de seguro, o professor presidente da mesa-redonda  carregado, desmaiado, morto?,  gritos exaltados, correria. A vistosa peruca cor de caramelo do professor quase cai, um enfermeiro segurou-a  a tempo. (Ninguém notara que o colega usava peruca. Belo trabalho de algum cabeleireiro europeu).

O Seminário Internacional  Cultura, Academia, Liberdade  corria bem, não fora a crise histérica do tal presidente da mesa-redonda de encerramento, um romeno com alentado currículo universitário em seu país  (aliás, o salão de coiffeur da peruca devia ficar em Bucareste, imagino. Soube que há profissionais cinco estrelas por lá. Além dos maravilhosos intelectuais). Num português espanholado, voz trêmula, nervosa,  gritou olhando, severo, em minha direção. O indicador da mão esquerda apontado para os meus olhos não deixava  dúvidas quanto ao alvo a ser atingido: a história é filha do tempo, senhor coordenador. Não dá para julgar um acontecimento  com instrumental teórico fora da sua época. Está encerrado o Seminário, hijos de p…a! Foram essas as suas palavras  antes do desmaio e da parafernália de carros e berros no Campus da Universidade  Federal do Rio de Janeiro.

Simples pico de pressão arterial. A informação chegou em duas horas por colega do Hospital Clementino Fraga do Fundão. Aliviados, foi possível, então, manter o  programa do folder.

Almoço de confraternização. Churrascaria em Ipanema. O colega romeno já estava no hotel Novo Mundo, no Flamengo, repousando. Mas a discussão continuava. Um professor italiano, em belo português, puxou o tema e queria briga. O palavrão assestado ao coordenador do evento foi legítimo, disse olhando para o meu vizinho na mesa ( o coordenador era eu). Talvez contagiado pelo amigo da Romênia, levantou-se, irritado,  mastigando um pedaço enorme de picanha sanguinolenta. Pior. Engoliu, glutão, o naco – deu para ver que a porção exagerada de carne custava a descer goela abaixo – e fincou o garfo num outro pedaço ainda maior  do prato e enfiou na boca. Não deu outra. Engasgou-se. Sentou, meio arroxeado, uma professora mineira deu-lhe tapinhas nas costas. É um santo remédio, afirmou. Mas não foi. Ele cuspiu um bolo de carne  – da segunda garfada-  na toalha da mesa. Me deu uma olhada italiana de ódio, como se fosse eu o culpado também da má deglutição  carnívora. Agora estava branco tal uma folha de papel. Como  a cara dele era meio retangular, parecia uma folha de papel  A4. Aproveitei a deixa para me pronunciar, afinal estava sendo acusado o tempo todo ( nunca mais vou aceitar coordenar seminários na vida).

– Cada época constrói a  sua estrutura psíquica. O texto literário é pluridimensional, por isso as análises devem ser também.

Eu disse a frase em alta voz. Pra quê! A colega mexicana, conhecida poeta, não gostou. Senti pela cara de raiva. Ela bebia a caipirinha agarrada ao copo com as  duas mãos, apenas o dedo mindinho direito esticado. Era para mim aquele dedo espichado?  Um professor argentino  me fuzilou: quais são as palavras-chave da nossa época?  Natureza, clima, trabalho, liberdade? Qual mitologia do Brasil deve prevalecer como fonte de compreensão da cultura brasileira? A de matriz africana? A indígena? A europeia do colonizador? A oriental dos mais de quatro milhões de descendentes japoneses no país?  A dos sírio-libaneses com dez milhões? A dos judeus presente em todas as regiões do Brasil? E esqueço alguma? É isso que a gente tem que analisar. E ao fazê-lo vocês brasileiros estarão compreendendo que o preconceito cultural é não só perverso como inútil, o Brasil é isso tudo aí . É esse exemplo que este país passava para fora e que agora querem alterar. A intolerância religiosa se espalha, o preconceito de gênero se avoluma, o racial ganha espaço. O Brasil de vocês é cultural, religiosa e etnicamente plural. Vamos aplaudir esse Brasil e resistir às forças que tentam estragá-lo.

Argentino é fera. Ele deu um banho e quando disse vamos aplaudir esse Brasil  todos se levantaram e bateram palmas enfáticas. Eu também, claro. Me veio uma visão do cara dançando tango no meio da churrascaria no piso engordurado. Em filme a cena imaginada teria sido show. Ele esclareceu o debate, mas fiquei me perguntando se também tinha alguma coisa contra mim (pelo tom).

–  Outra coisa a ser respeitada são as descobertas científicas, 95% delas realizadas  nas universidades. A constatação da relatividade do tempo  não mudou a história do espírito humano?  Uma epidemia mortal não modificou certos valores?  A sua cura não foi  festejada? Em relação à literatura, que a gente falou ontem no Seminário: não há esfera estética autônoma , o que vale é a perspectiva de evolução da humanidade. Obra de arte é isso. E o nosso coordenador não entendeu ( a peroração foi de uma colega da Bahia).

Eu era de novo o símbolo. O que será que eu disse que tanto desagradou aos convidados?

-O que está em jogo é o consórcio produção de saber e transmissão de conhecimento, e o nosso coordenador entendeu sim ( a colega da Universidade Nova de Lisboa  vinha me salvar. Deo Gratias).

A portuguesa batia de frente – já durante todo o Seminário – com uma participante da Croácia, sentada na ponta da mesa, de costas para a rua Visconde de Pirajá. Tinha rolado numa das palestras a questão da terra plana e do criacionismo.  O representante oficial  de uma agência de fomento de Brasília  trouxe para o debate. Por sorte, assim que fez a sua comunicação embarcou de volta para o planalto central.  A croata, a mais importante agente literária do seu país, desceu o cacete  nos estudos de literatura nas universidades num português arrastado. Não me interessa o que é feito na academia universitária, meus clientes escritores têm compromisso com as premiações, as redes sociais e a televisão, observara sentadona por trás de óculos fundo de garrafa ( ela tinha feito a palestra em inglês).Acho que a croata não  se dá conta, mas pensa parecido com a fala do representante oficial de gravata. Como conheço alguns dos seus textos, progressistas e democráticos no geral, ela , ao raciocinar comercialmente, também abraça, sem querer, a ideia de que as coisas e as gentes já chegam prontinhas formatadas por alguém poderoso. Criar saber nas universidades sobre literatura é  para ela subversivo ( e atrapalha os seus negócios) . O saber  subverte sim o conhecimento prévio. É isso que incomoda.

Os colegas do Senegal e da França, sempre andando juntos, tentaram relativa trégua com o tema do amor. O de Paris tinha os olhos hipnotizados pela bela garçonete. O do Senegal, normalmente caladão, se esmerou. Gostava de falar português. Vivera até a adolescência na fronteira com a Guiné Bissau.

– Se no Romantismo o amor redimia, no Realismo o amor doía e no Modernismo o amor instruía, no século XXI o amor tece uma sociedade  baseada na fraternidade. A pessoa ama outra pessoa, pouco importa a sua cor, o seu sexo, a sua nacionalidade, a sua religião ou a sua faixa etária se maior de idade. Esse é o avanço que agora  querem implodir. Não deixaremos, resistiremos sempre. Não à censura. Pela liberdade do amor e da arte.

Gozado. Os aplausos não se deram, como era de se esperar. É provável que todos tenham tido o pensamento voltado para os seus amores. Daí o silêncio e a introspecção.  Mas, como sempre,  houve exceção. A professora de Alagoas pôs-se a chorar baixinho  e, num gesto exagerado, hiperbólico, exasperado, foi-se, celular em punho, falar com o seu amor( é o que a gente pensou) na porta de entrada da churrascaria. Logo pintou outra desavença. O colega gaúcho disse, sorrindo, “ deve ser amante dela, se fosse marido ou esposa ela não se alvoroçava assim”.  Gritos de machista ecoaram por entre maminhas, lombinhos, picanhas  e coraçõezinhos no espeto.

Pensei em participar da nova briga. Mas já estou cheio dessa visão teórica confusa entre o discurso conservador e o progressista. Por sorte Madame K. , minha querida amiga,  ligou do Fundão, chorosa, sua namoradinha ,quinze anos mais nova do que ela,  a abandonara por outra da sua idade. Aproveitei, me despedi com um aceno e falei do certificado do Seminário . Em breve eles o receberiam por e-mail. Soube mais tarde  que a peruca  cor de caramelo do colega romeno sumiu no Hospital Universitário do Fundão. Ele teria ficado furioso. Deve estar com mais raiva ainda de mim.

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Godofredo de Oliveira Neto é contista e romancista, autor dos romances  O Bruxo do Contestado, Menino oculto, Marcelino, Amores exilados e Grito, entre outros. Menino oculto recebeu um das estatuetas na premiação do Jabuti/2006 e, foi, com Amores exilados, publicado na  França. Grito (2016) foi premiado como romance do ano pela União Brasileira de Escritores e pela Academia Catarinense de Letras. Marcelino acaba de ser publicado também em Portugal, na Feira Literária de Óbidos. Ana e a margem do rio, com o selo de Altamente recomendável pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, teve edição na Bulgária. É Professor-Titular de Literatura Brasileira da UFRJ.

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