* Por Nilma Lacerda *

Au Lapin Agile é um cabaré centenário de Montmartre, ponto de encontro dos artistas que fizeram o final do século XIX e a primeira metade do XX. O nome deriva de uma receita de coelho à moda de Gil, cozinheiro da época. Na rua des Saules, onde já não há salgueiros-chorões, um pouco antes da place du Tertre, ponto obrigatório do turismo parisiense, o prédio pintado de cor-de-rosa com portas e janelas verdes, parte da fachada coberta de hera, recria uma atmosfera de canções, conversas, poemas, historietas, em alegre convívio. 

Rio de Janeiro, sem data, pensando a ida para Paris.

Bastava o estrangeiro, não precisava ser Paris. Quando Rui de Oliveira me falou da bolsa Virtuose do Ministério da Cultura, concedida a pesquisadores com obra já desenvolvida, comecei a projetar como viável o antigo desejo de estudar fora do país.

Por que não escrevi na época sobre a emoção de ter sido contemplada com a bolsa, de materializar enfim o sonho acalentado por tanto tempo? Reviso esses originais, nem um parágrafo escrito na ocasião. Em Paris, bem mais tarde, ao organizar as versões deste diário para os seminários de Chartier e Hébrard, a menção ao prêmio, os agradecimentos vêm naturalmente. Mas então já estava afastada do tumulto que foi montar o projeto, do sofrimento na expectativa do resultado, do bloqueio do pensamento sobre minha ausência de casa por um ano. Foi uma decisão solitária, sem perguntar a ninguém se devia ir ou não. Contei com a torcida e a ajuda de algumas amigas, a alegria da filha mais nova, o medo da filha do meio, os temores do marido. Foi um tempo de angústia, de preparar a separação e o corpo para que vestisse a pele de que sou feita, afinal.

“Pele de foca, pele da alma”, tal como Clarissa Pinkola Estés nomeou o conto nórdico “A mulher-foca”, me acompanhou, linha a linha, nesse percurso de volta a casa.

A nave de Niemeyer pousa na pedra, porto que terá esperado por longo tempo uma embarcação desse tipo. Ao lado, pouco mais adiante, a ilha de Boa Viagem, alcançada a pé com a maré baixa, abriga a igreja de Nossa Senhora de Boa Viagem e o forte da Boa Viagem, construções de meados do século XVII, início do XVIII. O museu de Arte Contemporânea, a igreja e as ruínas do forte mantêm a sincronia dos objetos envolvidos nas ações de encontros e despedidas, chegadas e partidas.

Niterói, agosto de 2001.

A igreja construiu-se naquele que era o último ponto avistado pelo navegante ao sair da barra. Fiz questão de me despedir da tia querida em Friburgo, antes de embarcar para Paris, mas quis antes passar em Niterói, num ritual completo de quem perde a terra de vista, ganha o mar alto. Da tia, de sua filha, minha comadre, e família levei comigo carinho e bons votos.  Da igreja, recolhi a oração impressa:

Oração da boa viagem

 

Senhor, todo-poderoso e

Deus de misericórdia,

guiai-nos pelo caminho da paz

e prosperidade.

 

Não permitais que nos

encaminhemos a algum lugar

em que possamos ofender-vos.

Acompanhe-nos vosso santo anjo

em nossa viagem

para que voltemos

à nossa morada

sãos e salvos,

sem contratempo nem desgraça.

 

Amém!

 

Partir em viagem é arriscar-se. O perigo dorme na perda do cotidiano, no trânsito dos caminhos seguros, de tão repetidos. Ninguém espera encontrar Adamastor na praia do bairro.

*

Nilma Lacerda é autora de Manual de Tapeçaria, Sortes de Villamor, Pena de Ganso, Cartas do São Francisco: Conversas com Rilke à Beira do Rio. Professora da Universidade Federal Fluminense e também tradutora, recebeu vários prêmios por sua obra, dentre os quais o Jabuti, o Prêmio Rio e o Prêmio Brasília de Literatura Infantojuvenil

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