* Por Marcos Peres *

No fim da adolescência/começo da maturidade, criei coragem para mostrar alguns contos em um blog, o Contos Maringaenses. O projeto tinha poucas visualizações, de modo que minha timidez e meu anonimato não se alteravam com a publicação. Um dos meus escritos tinha o seguinte argumento: o padre de uma cidade pequena se apaixona por uma fiel. A fiel, menos por amor e mais por resignação, aceita o homem, já na condição de ex-padre, como marido. A cidade insiste em vigiá-los e, secretamente, açoitá-la, como serpente que fez o pastor de Deus cair em tentação. Em determinado ponto, uma prima do ex-padre, chamada Beatriz, também exonerada de um convento, pede pouso ao casal.

Um dos temas desse escrito era a tormentosa a ressocialização de alguém que destinou sua vida a Deus. O segundo argumento era mostrar a protagonista sentindo-se culpada por desviar o curso da vida natural de um padre. Ainda que racionalmente refute, no fundo ela faz eco às vozes condenatórias da cidade. Quando Beatriz – a priminha – pede pouso, a reação da esposa é sentir-se enciumada. Sabe que seu marido já foi desviado uma vez, desviar-se agora não seria inédito. Em um segundo momento, aceita a possível traição; talvez as hordas celestiais tenham mandado Beatriz, saída diretamente de um convento, para seduzir seu marido; talvez a protagonista deva sentir o que fez sentir a Igreja, os fiéis, a paróquia. Talvez – julga – este seja o castigo pelo crime que pensa ter cometido.

Depois de imaginar os primos se amando, depois de alguns encontros fortuitos com Beatriz pela casa, a protagonista entende que não sente ciúmes dele, mas dela. No fim, se entrega ao amor: ao amor que sente por Beatriz. Se já é escarrada pela cidade, que seja para finalmente se entregar. Ou alterando causas e consequências: pretendi narrar não um castigo decorrente um crime. Mas, sim, a história de uma pessoa que foi julgada criminosa sem crime, e que, no final, alcança a sua redenção.

Para manter viva a lembrança do passado celibatário do esposo, descrevi a casa com quadros sacros, escapulários, rosários e santos. Para contrastar com o ambiente claustrofóbico, ilustrei o conto com imagens (obviamente não autorizadas) de um tarô erótico de Milo Manara. As imagens de Manara tinham enormes falos, vulvas, freiras se masturbando e me parecia um contraponto interessante para o ambiente sacro/profano do texto.

Tudo isso é desimportante, e o conto não resultou em grande coisa. A anedota que pretendo contar, sim, é de algumas semanas seguintes, quando, no almoço dominical de família, um tio revelou que havia lido “As horas de Beatriz” (um nome que chupei descaradamente de As horas de Katharina, de Bruno Tolentino). O Tio falou após um pigarro, enfatizando o nome do conto, como se fosse uma revelação. “Temos um artista na família, sabiam?” Em seguida, enveredou para as imagens de Manara, julgando-as “pervertidas”, “de mau gosto” e “destruidoras do conceito cristão de família.”

Com frango e farofa na boca, não consegui responder. O tio continuou, triunfal. “Já é um homem, rapaz. Sabe que hoje em dia contratam olhando o que postamos na internet? Acha que um empresário te contrataria se desse um Google no seu nome?”

A avó, que não sabia bem quem diabo era Google, perguntou o porquê de aquilo ser ruim. E o tio, na ponta da mesa, empunhando a coxa de frango como cetro de seu discurso inquisitório, falou as palavras que devia ter muito ensaiado: “Porque, ora, se você digitar o nome do guri no Google, o resultado é um monte de pirocas saindo da tela do computador.”

Iniciações são feitas para serem cumpridas, e o retrato do artista da família, quando jovem, era este: o desnudar do pequeno tarado, que, apesar de comer o frango com farofa do domingo, era um inimigo da família, da igreja, do matrimônio e da ordenação religiosa. Além disso, claro, havia as pirocas…

Engoli em seco, mas não consegui responder. Não consegui dizer que Beatriz não me pertencia, como também não pertencia ao ex-padre, nem aos sonhos eróticos da minha novelinha. Beatriz é uma firma. Beatriz é uma ideia, um logo. Uma concepção. Há uma obviedade neste conto (que, claro, não foi percebida pelo tio): a Beatriz que expia os pecados; que, no final, dá a mão para a protagonista e a leva para o amor e para a redenção, é uma alusão a Beatrice Portinari, a Bice, que habita o Paradiso.

Os comentaristas da Commedia pelos séculos vão discutir a natureza de Beatriz, como guia definitiva de Dante. A tradição quer que Virgílio represente a razão (e, portanto, seja o guia ideal para mostrar as faltas e os pecados) e Beatrice seja a encarnação da fé. Beatriz pisa nas estrelas e mostra a Dante o empíreo. Interpretação óbvia, pela fé se chega a Deus. Assim como todo o conhecimento e as faculdades racionais não são capazes de dar ao Homem sua escada para o paraíso, disso também sabem Plant & Page. Outros comentaristas vão além: relembram a Vita Nuova e as palavras: “falarei de ti o que nunca foi falado para mulher alguma” confundindo o Dante-autor com o Dante-personagem, a Beatriz celeste com Beatrice Portinari, talvez sua paixão.

Borges, em O último sorriso de Beatriz (Nove ensaios dantescos), toma essa interpretação ao extremo e advoga que a Divina Comédia nada mais é que uma extensa carta de amor. Dante constrói a cartografia infernal que serviria de molde para a religião, para as artes e para o imaginário popular; cria a selva, o meio do caminho, a montanha invertida, o purgatório; manipula a busca a Deus, quando só quer se encontrar com sua Bice. E seu encontro é narrado em forma de sonho; após o último sorriso de Beatriz, Dante, personagem e autor, sabe que não a verá nunca mais. Com a palavra, senhoras e senhores, o pervertido Borges:

“tenho a impressão de que Dante edificou o melhor livro produzido pela literatura para intercalar alguns encontros com a irrecuperável Beatriz. Melhor dizendo, os círculos do castigo e o purgatório austral e os nove círculos concêntricos e Francesca e a sereia e o Grifo e Bertrand de Born são intercalações; um sorriso e uma voz, que sabe perdidos, são o que importa”.

Fé, amor, obstinada busca. No momento em que escrevi ‘As horas de Beatriz’, vinha-me na cabeça este último sorriso, além da possibilidade inversa: de que a guia, após sorrir, não se esvanecesse no empíreo. Que o amor, além das pirocas enormíssimas e das vulvas de Manara, pudesse subsistir. Não por acaso usei como epígrafe uma destas frases borgianas que temos vontade de tatuar no corpo e na alma, de tão terrivelmente lindas que são: ‘apaixonar-se é criar uma religião em que Deus é falho’. Minha pequena tentativa era a de dar um fim diferente do que a Tradição quer e espera para Beatrice: ao dar a mão para a minha protagonista, ao guiá-la para fora da casa/relicário de seu esposo, a mulher amada não se esvaneceria nos confins do paraíso. Seu amor seria real, vivido sob as estrelas e o incessante burburinho de uma cidade pequena – que, certamente, reprovaria o amor homossexual.

Obviamente, trata-se uma tentativa humildíssima, muito questionável. Obviamente, há maneiras mais eficazes e literárias de emular a apoteose de Beatrice Portinari do que a história de uma homônima que guia uma personagem cheia de culpa, prometendo-lhe o amor e dizendo algo do tipo: “venha que vou te fazer ver estrelas, gata!” Obviamente, a Tradição pode ser bebida com mais véus, com mais intertextualidade e requinte, disso não tenho dúvida. O que me incomodou naquele encontro dominical foi que, bem ou mal, meu tio não passou apenas por cima do meu texto e/ou do meu sonho de aspirante a escritor. Ao reduzi-lo a membros sexuais e perversão, negou a existência da Tradição. Da Literatura-com-L-maiúsculo.

Não respondi por estar com a boca cheia de farofa, mas, mortificado de vergonha, não teria respondido de qualquer forma. Com o tempo, mentalmente refiz o momento criando diálogos, variantes, veredas de um instante que, infelizmente, não se bifurcou. Hoje, responderia que, sim, era preocupante que meu nome fosse associado ao escrito porque, de fato, era um conto pobre, mal executado. Mas o argumento – não meu, não meu – era importantíssimo. A viagem em busca de Beatriz (aliás, nem este título inventei: foi retirado de Borges Babilônico, de Jorge Schwartz) é recorrente, universal, atemporal. Diria para o tio se esquecer das imagens, das palavras de baixo calão, e compreender que aquele escrito era feito de um núcleo duro (rijo como os falos de Manara) de uma insondável busca. Diria que Beatriz talvez seja o único tema possível – para a ficção e para a vida.

Em Beatriz buscamos Deus, a fé, o amor; edificamos nossas razões, imortalizamos nossos anseios, elegemos objetivos para levantarmos todos os dias do reino de Morpheus; por Beatrice, ainda que a ela seja dado outros nomes – o islamismo, a zaga do Corinthians, a busca pela paz, a queda do Capitalismo – destinamos nossos sonhos e os transcrevemos, talvez para que permaneçam palpáveis, enquanto escritos. ‘Não há paraísos senão os paraísos perdidos’, outra frase borgiana que eu adoraria tatuar, de tão cortante que é. Só temos a noção da existência do paraíso quando somos expulsos, quando perdemos o último sorriso da mulher amada, enormíssimas sejam as pirocas de Manara, Borges sabia, Dante sabia!

Hoje, diria essas coisas ao tio; sua resposta, prevejo, seria a mesma: ‘Quer falar difícil, rapaz, mas o seu texto se trata apenas de uma coisa: de pirocas, de pepecas e de coisas imorais. E nenhuma empresa contrataria um cara que escreve sobre uma caralhada destas, pode apostar!”

Arquétipos, como Beatriz o é, também o são os almoços dominicais, o ritual de passagem dos jovens artistas, as constrangedoras apresentações. Os julgamentos empedernidos não são raros, os tios reacionários também são eternos. Disso sabem Duchamp, os ismos e todos os modelos artísticos que não flertaram com a simetria. Disso sabem Henry Miller, Manara, Nabokov, Llosa. Disso sabem as vanguardas, os que propõem a ruptura, as quebras de tradição. Disso sabem tantos e tantos artistas contemporâneos, julgados por uma tribo de tios munidos de todos os gifs e memes e frases prontas de WhatsApp – e que lhe conferem autoridade real sobre o assunto.

Meu conto perecerá (aliás, para a alegria do tio, nem no Google consta mais). Perecerão os tios munidos de coxas de frango, os seus celulares, os seus julgamentos peremptórios. Perecerão até mesmo as estrelas, pisadas pelos anjos. Acima disso tudo, sobrevive Beatrice. Como ideia. Como firma. Como Tradição a inspirar a viagem de tantos e tantos sobrinhos aspirantes a escritor. E só isso importa.

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Marcos Peres é servidor do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Autor de O evangelho segundo Hitler (prêmios SESC 2012/2013, São Paulo de Literatura 2014 e finalista do Prêmio Jabuti 2014) e do romance policial Que fim levou Juliana Klein?

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Arte: Iberê Camargo

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