* Por Rafael Gallo *

A primeira vez que li Doutor Fausto (Companhia das Letras, 2015), de Thomas Mann, foi quando eu tinha uns 19, 20 anos. Era a época em que estava muito ligado aos estudos de música, sob a batuta de um professor que foi um grande mestre para mim. Um segundo pai, de certa maneira. Foi ele que me iniciou e me orientou em grande parte da minha “instrução intelectual”, por assim dizer, para bem além da música. E ele quem me indicou esse livro. Acho que sabia que eu ia adorar.

Decidi relê-lo recentemente por dois motivos: o primeiro é porque a história de Doutor Fausto tem muito a ver com o romance no qual estou trabalhando; é, sem dúvidas, uma referência importante. Especialmente em relação à abordagem de se utilizar da figura de um músico – pianistas em ambos os casos – para representar parte das tensões sociais contemporâneas, utilizando o protagonista como uma espécie de alegoria de certas movimentações políticas ou ideológicas. A segunda razão é porque, no fundo, sempre quis revisitar essa leitura. Minha memória não é grande coisa, então depois de um tempo sem contato com um livro eu o esqueço na maior parte. Como sempre considerei esse romance de Thomas Mann uma das melhores leituras da vida (pelo menos era essa a “sensação” que havia ficado em mim), queria ver como seria percebê-lo enquanto o leitor que sou hoje.

É um pouco temeroso voltar, tantos anos depois – estou com 37 agora – a algum livro que tenha nos marcado demais. Eu, pelo menos, tenho medo de “quebrar a mágica”, de substituir aquela espécie de encanto que tinha pelo livro (o encontro com um romance aos 20 e aos 37 nunca é a mesma coisa, você mudou como pessoa, como leitor, portanto o livro também “muda”). Outro livro que tenho vontade, mas ao mesmo tempo receio, de reler é O encontro marcado, de Fernando Sabino. Exatamente pelo mesmo motivo: quando o li, bem mais jovem, foi um daqueles “atropelamentos bons” na vida. Hoje, como seria?

Mas voltando ao Doutor Fausto, foi realmente uma experiência diferente dessa vez. Mais ambígua, menos deslumbrada. As longas descrições e discussões, especialmente acerca de personagens coadjuvantes, me cansaram um pouco. Mas, de resto, o livro é sensacional. Um verdadeiro monumento, que retrata a Alemanha em meio às duas Grandes Guerras e ao regime nazista. Adrian Leverkühn, o “herói” do livro, representa o país em algum grau, ao vender sua alma para o diabo. No caso particular dele, o pacto é estabelecido a fim de garanti-lo tempo, disposição e capacidades para realizar sua grande obra musical. A presença demoníaca perpassa todo o livro, feito uma sombra velada a contaminar tudo. São muitas – e tocantes – as ressonâncias com a sociedade que se dispõe ao nazismo e com o(s) indivíduo(s) que, em troca da satisfação de seus desejos, entrega(m)-se ao lado nefasto. Que tais enredos se deem em um meio intelectualizado e artístico, justamente avesso ao que seria denominado como barbárie, é ainda mais caracterizador da Alemanha hitlerista. Também é notável – especialmente nas comparações que podemos fazer com o mundo de hoje – que certas proximidades com o diabo se deem justamente onde viceja a suposta religião cristã.

Mann escreveu Doutor Fausto no calor dos acontecimentos: a primeira edição foi lançada em 1947, tendo a escrita se iniciado em 1943. Aliás, emendei à leitura do romance outro livro que espero ver relançado um dia: A gênese do Doutor Fausto. Neste, o autor retorna aos diários do tempo em que escreveu o romance, para contar sobre sua criação. É fascinante ver o quanto ele se dedicou a leituras (há muitas referências intelectuais no livro, são de fato impressionantes), o quanto tinha de lidar com eventos e questões da realidade (desde compromissos em eventos e trabalhos com outros textos, até o curso da Segunda Grande Guerra), e as dúvidas e inseguranças que teve quanto à qualidade do livro. Qualquer pessoa que escreve pode se identificar com esses ruídos ao redor da criação, guardadas as devidas proporções.

Talvez Doutor Fausto não seja indicado para quem não tem muito hábito de leitura, assim como maratonas longas não são recomendáveis para quem pouco caminha. Mas aos que se animam a encarar um romance de quase 600 páginas, repleto de referências musicais e intelectuais, eu posso dizer com certeza que essa é uma leitura das mais marcantes. Leva vários dias para terminar, mas, ao fim, outros tantos dias o livro ainda fica “grudado” em você. Te assombrando. Esses são os melhores.

Trecho:

“Chamem de possibilidades tenebrosas da natureza humana em geral o que entre nós se manifestou – resta, no entanto, que homens alemães, às dezenas, às centenas de milhares perpetraram o que faz a humanidade estremecer de horror, e tudo o que jamais tenha levado uma existência alemã há de ser doravante objeto de asco e paradigma do Mal. Que significará então pertencer a um povo cuja história lhe preparou tal malogro atroz; a um povo sem fé em si mesmo, moralmente consumido, que confessadamente desespera da possibilidade de governar-se a si próprio e acha ainda preferível transformar-se numa colônia de potências estrangeiras; a um povo que terá de viver isolado dos demais, como os judeus do gueto, porque o ódio terrível que se acumulou a seu redor não lhe permitirá sair de suas fronteiras – a um povo que já não pode aparecer em público?”

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Rafael Gallo nasceu em São Paulo. É autor de Rebentar (Ed. Record, 2015), romance vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura, e Réveillon e outros dias (ED. Record, 2012), coletânea de contos ganhadora do Prêmio Sesc de Literatura. Ambos os livros foram finalistas do Prêmio Jabuti. Tem ainda contos publicados em diversas revistas e antologias, como a Desassossego (Ed. Mombak, 2014) e a Machado de Assis Magazine (Ed. Biblioteca Nacional, 2012), que publicou tradução do conto Réveillon para o espanhol.

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Na foto, cena do filme “Doutor Fausto” (1982), dirigido por Franz Seitz, que adapta os principais episódios do livro de Thomas Mann,

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