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‘É o menino em nós

 ou fora de nós

recolhendo o mito.’

                               Carlos Drummond de Andrade

Por Ronaldo Cagiano *

Desde sua estreia poética com o volume O salto sem trapézio (Coleção Lima Barreto, Edição Senado, DF, 1984), Paulo José Cunha (carioca de nascença, piauiense de alma e brasiliense de coração e adoção) vem trabalhando com a memória e o passado como fontes para sua peculiar construção literária.

O mergulho no coloquial, nas fontes da cultura popular, imaginário social e do inconsciente (pessoal e coletivo) constitui toda uma práxis poética em que a palavra é repositório das lembranças da infância, capturando a memória do tempo, das coisas, das pessoas & dos acontecimentos para instauração de um olhar ao mesmo nostálgico e reflexivo sobre sua trajetória existencial.

Não há segredos formais ou contorcionismos de linguagem para explicitar essa ancestralidade que acompanha P. J. Cunha, porque a poesia nasce sem esforço e sem mistificação, porque emerge das suas mais caras raízes, do mais (pro)fundo das sensações e experiências que o poeta tangenciou, com delicadeza, harmonia e ritmo próprios.

Não há melhor definição para a sua escritura, como a que (re)colhemos num dos versos de sua primeira lavratura: “toda palavra se explica/ no próprio verso em que habita” e essa sensação se comunica plenamente na mais recente safra, Perfume de resedá. Nessa obra de único fôlego, em que o poeta dá continuidade ao seu mapeamento afetivo, sentimental, histórico e mitológico da infância, lança, por meio de uma garimpagem no tempo & no espaço (geográfico, íntimo, psicológico) novas luzes sobre as andanças e peripécias do ser.

Em seu percurso poético, ressurgem emblemáticos, da fumaça difusa de um tempo não tão remoto, personagens, lendas, acontecimentos, imagens e tantos referenciais humanos, históricos e folclóricos, com sua carga mi(s)tica e sensorial. Nota-se toda uma eloquência de detalhes (em que memória e invenção se consorciam) que vão num território catártico, como bem definiu Edmilson Caminha na apreciação de seus versos.

O Piauí – seu cadinho e a instância a partir da qual transcende seu diálogo e faz suas incisões – oferece todo um potencial semântico e humaníssimo (para ser universal basta cantar o próprio quintal, advertiu Tolstoi)  a essa poesia recolhida nos ermos da própria vida, aquela que pulsa e atrai os olhos do poeta, nos contornos de um lirismo não piegas, mas afirmativo de uma identidade com as raízes; na esteira de um espanto, porém sem tintas escatológicas, diante de uma paisagem povoada de seres & sombras; escandindo, numa cartografia onírica e fabular, a alma máter do interior.

Nesse aluvião heterogêneo e cosmopolita, o homem cavalga na crina das lembranças e o poeta extrai dos modos, jeitos, costumes, falares, hábitos, cheiros, gestos, gostos, culinária e na cultura própria de uma região, matéria e circunstância para seu inventário particular.

Verdadeiros flagrantes de uma infância alada e imagética, que nos remete aos ambientes e universos retratados por um Juan Rulfo e um Gabriel García Márquez, cujos sertões se equivalem e são retratados com a mesma potência narrativa e a mesma riqueza plástica e metafórica, com idêntica e apurada artesania, harmonizando forma e conteúdo, numa dicção singular que confere a cada poema uma multifacética descrição de cenários e atmosferas. Cada objeto, situação, fato quotidiano deflagra uma recomposição emotiva; e é no caudal de cada emoção que o poeta se reencontra, nesse tempo e nesse mundo perdidos, porém transcriados.

Com sutileza estilística, Paulo José Cunha instrumentaliza esse longo poemário de Perfume de resedá com o mais genuíno dos artefatos: sua intensa vivência, e  com ela suscita uma louvação crítica do passado transmutado em presente. E sob a pele do jornalista e no fundo d’alma do escritor descobrimos “o menino/ que veio beijar as pedras/ e resgatar/ das ampulhetas/ a areia do tempo.” Estes versos de rica plasticidade e simbologia reverberam aquele íntimo e nostálgico nadar na terceira margem da própria vida: o passado que nunca sossega.

Feito as águas de um rio que vai ao mar, mas carrega consigo vestígios de onde passou, a palavra de Cunha transmite a sensação de que somos eternamente alimentados pela seiva desse passado, como já mesmo nos alertou o saudoso poeta mineiro Cacaso: “minha pátria é minha infância/ por isso vivo sempre no exílio.”

Sua poesia, testemunho de tensa e densa melancolia, de Pacatuba ao Distrito Federal, das encostas do Paranaíba às margens do Paranoá,  é um delicioso encontro de contas. Ela irrompe vulcânica e suas lavas trazem notícias de antanho, “vem lá do fundo/ fundo/ do mais profundo/ do oco do mundo/” para provocar o leitor com o que viu e sentiu: “sou/ o que viveu numa cidade/ adormecida na lembrança…/ condenado à sina/ de estar sempre voltando sobre os próprios passos…”

A leitura genealógica de Cunha nos remete àquela percepção de Augusto Meyer, para quem “a memória da infância é uma ilha perdida”, mas só passível de ser descoberta pela navegação poética, cuja única bússola é o verdadeiro sentimento do mundo.

O autor é jornalista, professor e documentarista, publicou também  dois livros de arte sobre a festa dos bois-bumbás de Parintins, Vermelho – Um pessoal Garantido e Caprichoso – A terra do azul e Grande enciclopédia internacional de piauiês (1978), livro-reportagem sobre os bastidores da votação da emenda que extinguiu o AI-5.

Como jornalista, foi repórter das sucursais da TV Globo e de O Globo, Rádio Nacional e Jornal do Brasil, em Brasília. Atualmente é âncora de três programas na TV Câmara e leciona na Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília.

Perfume de resedá (Ed. Oficina da Palavra, Teresina)

Avaliação: bom

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Ronaldo Cagiano é escritor, reside em São Paulo

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