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Por Alexandre Staut *

Figura mais do que íntima dos telespectadores brasileiros, Edney Silvestre mostrou o seu lado ficcionista em 2009, ao publicar Se eu fechar os olhos agora, romance que recebeu diversos prêmios e traduções em várias línguas.

Mas a literatura chegou muito antes na sua vida. “Dos 4 aos 6 anos, fui um garoto muito doente. Mal conseguia caminhar. Meus pais me davam livros para me distrair. Eu não os lia, mas imaginava histórias para as ilustrações”, diz.

Quando aprendeu a ler, descobriu que havia uma biblioteca pública (em Valença, interior do Estado do Rio, onde nasceu) e pegou todo tipo de livro e revista em quadrinhos – formato em que leu, pela primeira vez, Joseph Conrad, Alexandre Dumas, Jules Verne.

Assim, chegou aos livros de Jack London, de Victor Hugo, de Charles Dickens, de José de Alencar, de Edgard Rice Burroughs, de Graciliano Ramos e daquele que foi a sua grande e mais emocionante descoberta na adolescência, Thomas Mann.

Repórter especial da Rede Globo, âncora do programa Globo News Literatura, roteirista, dramaturgo, ele se firmou como uns dos escritores incontornáveis quando se fala em literatura contemporânea no Brasil.

As vésperas de participar do Salon du Livre de Paris, representando no Brasil, Edney concedeu a seguinte entrevista à São Paulo Review, em que fala de literatura, escrita, jornalista, do Brasil…

Poderia falar das traduções que fazia, nos primeiros tempos, de livros de faroeste? Eu já estava morando no Rio de Janeiro. Meus pais me davam o melhor que podiam, mas éramos seis filhos e o dinheiro muito, muito curto. No Rio, eu morava em quartos de empregada e pensões, precisava me sustentar, pagar meus estudos, comer, ir ao cinema uma vez por mês. Não sabia fazer muita coisa e precisava de tempo livre para estudar. Descobri que os livrinhos de faroeste eram traduções e pensei: por que não eu? Imaginei que traduzir aquelas tramas simples, cheias de frases clichês, fosse algo que eu pudesse fazer, já que sabia ler inglês e espanhol. Procurei o endereço da editora, fui lá, me ofereci. Fizeram um teste, gostaram, comecei. Simples assim. Eu era muito jovem, ignorante das sutilezas do mundo e, por isso mesmo, audacioso.

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Você já sabia, de alguma forma, que ia trabalhar com as letras, a comunicação? Sempre escrevi, desde que aprendi as primeiras letras. Escrever era o possível essencial porque eu era um menino muito tímido, raquítico, péssimo jogador de futebol e, além disso tudo, tinha problemas de fala. Na escrita, sem que eu soubesse porque, tudo fluía. Escrevendo eu não tinha nenhuma limitação. Na escrita encontrei meu alívio. Mas não sabia que, adulto, a escrita é que me daria meu sustento. Embora, pensando em retrospecto, creio que ser escritor era meu sonho desde que me entendi por gente.

Quando a comunicação entrou na sua vida efetivamente? Meu primeiro trabalho em redação foi na Manchete Press, a então recém-inventada agência de notícias da Bloch Editores – que na época publicava a revista semanal mais lida do país. Eu já havia ganhado um prêmio de cinema, por um curta-metragem intitulado ´Noivado´, vencedor do Festival Brasileiro de Cinema Amador, como Melhor Filme Experimental. Na Manchete Press eu era o diretor mas, também… O único funcionário: redator, tradutor, chefe, contínuo, tudo. Só fui contratado porque sabia escrever em inglês.  Ali comecei a fazer reportagens para as revistas da casa: Manchete, Fatos & Fotos, Pais e Filhos etc. Nasceu naquela época, 1970, minha paixão pelo jornalismo. Fui demitido porque participei de uma greve interna, por conta da (má) qualidade da comida – logo ali, onde a comida em geral era de bastante boa – e o líder da greve era um diretor de redação “indemitível”.  Fui o único demitido, aliás. Como, pretensiosamente, eu acreditava que sabia fazer filmes e escrever, abri o catálogo telefônico fui procurar emprego em agências de publicidade. Acabei trabalhando em algumas agências legais, outras nem tanto. Fui por um bom tempo redator e diretor de filmes de publicidade na agência DPZ, ao lado de craques como Washington Olivetto, Rodolfo Vanni, Francesc Petit, Roberto Duailibi, José Zagagoza. E sempre colaborando com artigos e matérias para revistas.

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E a viagem a Nova York, para se tornar correspondente da Globo? Quais as suas memórias deste período? Por causa de um prêmio num festival de filmes publicitários em Nova York, ganho pela direção e criação de um comercial, fui convidado para trabalhar na produtora KSK Visuals, sediada em Manhattan, em 1990. Aceitei. Escrevia e dirigia comerciais e videoclipes, ao mesmo tempo em que continuava colaborando com artigos para publicações no Brasil. Mas não me encontrava ali, não era feliz. Percebi, finalmente, que era o jornalismo que me dava realmente prazer e, num dado momento tive de optar entre esse trabalho em cinema publicitário em Miami e o convite para ser correspondente em Nova York do jornal O Globo – que na época passava por uma reviravolta, comandada por Evandro de Andrade e Luis Erlanger. Lá fui eu, para um dos períodos mais felizes da minha vida. Erlanger e Evandro me incentivavam a ser cada vez mais original e ousado. Eu reportava sobre a intensa, vigorosa, original e surpreendente vida e cultura em Nova York. Entrevistei desde o escritor Norman Mailer e a drag-queen Ru Paul, cantores como Janet Jackson e James Taylor, atores como Daniel Day-Lewis, Paul Newman e Lauren Bacall, feministas, líderes gays, dramaturgos, políticos, prêmios Nobel.  Viajei ao Iraque, Cuba, Honduras. Cobri desde furacões até visita do Papa e marchas da Ku-Klux Kan. Essa minha experiência variada está contada em três livros: Dias de cachorro louco (Editora Record, esgotado), Outros tempos (Editora Record) e Contestadores (Francis Editora).

Nesse momento você já escrevia ficção? ‘Se eu fechar os olhos agora’ foi um texto que comecei a compor desde mesmo antes de me mudar para Nova York. Lá continuei. Eram anotações, pesquisas sobre as épocas retratadas ali (ditadura Vargas, tráfico de escravos, o coronelismo, as Encíclicas Papais de João XXIII, a Guerra Fria, a saga de Yuri Gagarin, os tempos conturbados de Jânio Quadros e João Goulart etc). Ainda quando vivia no Brasil apresentei um texto de um romance experimental a dois editores. Ambos rejeitaram o romance, que eu havia intitulado “Oh, ho, ho, Babilônia”. De volta ao Brasil, em 2002, continuei a compor Se eu fechar os olhos agora, mas não encontrava a chave da narrativa. Isso só me aconteceu mais tarde, quando percebi que romance era narrado, na verdade, pelos dois jovens personagens, Paulo e Eduardo, e finalizado pelo menino que sobreviveu. Só fui mostrar para a Luciana Villas-Boas, então editora da Record, em 2009. Ela acolheu o texto com entusiasmo e decidiu publicá-lo naquele ano, mesmo. No ano seguinte, o livro ganhou os prêmios São Paulo de Literatura e Jabuti de Melhor Romance. Ainda durante meus 12 anos em Nova York, tive um texto publicado nos Estados Unidos (na coletânea Conversations with John Updike) e um livro de crônicas editado no Brasil, Dias de cachorro louco (Editora Record).

Boa noite a todos

O que mais te chama a atenção quando pensa na sua carreira na tv? Talvez, no futuro, eu venha a ser lembrado como o repórter que foi o primeiro a chegar ao World Trade Center, o local dos atentados de 11 de setembro, onde morreram quase três mil pessoas. Talvez seja pela minha contribuição à divulgação da literatura brasileira, à frente, desde 2002, do programa Globo News Literatura. Pode ser que, como vem acontecendo nos últimos tempos, o público de televisão aprecie o trabalho que faço mostrando a vida extraordinária de pessoas ditas ‘comuns’ – feirantes, lavradores, peixeiros, favelados – em programas como o “Brasileiros” ou o Globo Repórter. Tenho muito carinho por esses dois últimos, que me ensinam como os brasileiros são resilientes e admiráveis, por maior que seja a crise ética, financeira, cultural e política que nos ameaça ano após ano. Meu momento mais emocionante foram muitos. Um deles, seguramente, o momento em que, entrevistando José Saramago na casa em Lanzarote, ele me abraçou paternalmente.

Quando percebeu que devia começar a lançar livros de ficção, romances? Não houve uma ‘descoberta’, no sentido estreito da palavra. Eu escrevia e queria publicar. Mas percebia que escrevia de uma maneira fora dos padrões. Isso me deixava sempre conjeturando se eu poderia estar nas estantes de livrarias e bibliotecas ao lado de autores que eu admirava tanto, como Eça, Ubaldo, Swift, Camus, Yourcenar, Graciliano, Drummond, O´Neil. Até que, depois de passar anos compondo e reescrevendo, jogando fora e recomeçando Se eu fechar os olhos agora, deixei o original de lado. Passaram-se um ou dois meses. Até que reli. E concluí que minha maneira de escrever fora dos padrões era minha forma de contar, uma forma diferente dos outros, era minha voz. Foi quando submeti o romance à Luciana Villas-Boas. E, aí, tudo aconteceu.

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Depois dos prêmios de Se eu fechar os olhos agora ficou mais seguro para lançar os próximos livros? Como foi descobrir a sua voz ficcional? Quando ganhei o Jabuti de Melhor Romance, e o Prêmio São Paulo de Literatura por Se eu fechar os olhos agora, o livro já tinha sido vendido para Portugal, Sérvia, Holanda e França. E eu já estava bem adiantado na construção de A felicidade é fácil (que também já saiu na França, Grã-Bretanha e sairá na Alemanha). Tive a sorte, na minha estreia, de ter a Luciana Villas- Boas como minha editora, sempre uma leitora e conselheira perspicaz, e o apoio firme da Record. Hoje a Luciana é minha agente, junto com Tassy Barham, e tive meu livro mais recente, Boa noite a todos igualmente publicado pela Editora Record, com total força.

O que tem produzido neste momento? Estou compondo um livro de contos, alguns bastante longos, quase novelas, outros bem curtos, com um ou dois parágrafos, para possível publicação em 2016; faço uma adaptação de meu texto Boa noite a todos, uma nova versão da peça publicada pela Editora Record com a novela, em 2014, que será montado ainda este ano no teatro Centro Cultural dos Correios, no Rio de Janeiro, com direção do Ulysses Cruz; termino outra peça, para ser encenada por três atrizes, uma comédia intitulada Grandes damas.

Poderia falar um pouco dos seus personagens? O que eles querem de você, o que pedem? Vez por outra, acordo com um personagem ‘falando’ comigo. Não é novidade. Passou a acontecer desde que Paulo (de Se eu fechar os olhos agora) veio me contar o início do romance. Eu vi claramente a voz dele, ditando: ‘Se eu fechar os olhos agora, ainda posso sentir o sangue dela grudado nos meus dedos.’ E continuava. Assim foi, até o final. Depois de passar um tempo achando que eu era um tanto doido, me rendi e tento, desde então, ficar antenado para a ‘chegada’ deles.  E fui constatando que isso acontece com muitos outros escritores. Os personagens dos meus livros aparecem e eu sigo o conselho do João Ubaldo Ribeiro: saio atrás deles – e delas – anotando tudo o que fazem. Alguns partem, depois de algum tempo, como aconteceu com Eduardo, o outro menino de Se eu fechar os olhos agora. Mas Paulo permaneceu, e voltou em Vidas provisórias. Quem também voltou neste livro foi Bárbara, personagem de A felicidade é fácil. No livro de contos que estou compondo, foi a vez do retorno de Silvio Bergher, que aparecera com destaque no mesmo Vidas provisórias. Meus personagens fazem gato e sapato de mim.

Aproveita os personagens do jornalismo para construir seus personagens na ficção? Em alguns casos, os personagens dos romances são – ou eram – pessoas reais. Jânio Quadros, George Bush, Saddam Hussein, Zélia Cardoso de Melo, Anita Ekberg, Florinda Bolkan, Getulio Vargas são alguns exemplos. É natural que aconteça, pois minha ficção é profundamente ancorada na realidade histórica, particularmente a do Brasil. Como foi o caso de Fernando Collor de Melo, em A felicidade é fácil. Nossas vidas foram profundamente afetadas pelos atos daquele primeiro presidente eleito por voto direto em nosso país, após a ditadura militar. Também naquele romance utilizei fatos jornalísticos, como o confisco da poupança, a Guerra do Golfo, a inflação dos Anos Sarney, a escalada dos sequestros no início dos anos 1990. Outra pontuação de realidade, naquele mesmo romance, são as músicas de sucesso naquela época, como as canções de Madonna, Whitney Houston, Ricky Martin.

Quais personagens ainda quer levar para os seus livros? O michê brasileiro em Nova York, um dos personagens capitais de Vidas provisórias, reaparecerá no livro de contos a ser publicado em 2016. Tanto Barbara (de A felicidade é fácil), quanto Paulo (de Se eu fechar os olhos agora), que protagonizavam como expatriados em capítulos alternados de Vidas provisórias, ele na Suécia e Paris, ela em Nova York, representam tão bem duas gerações diferentes de brasileiros que muito provavelmente estarão em um novo romance, ao lado de personagens inéditos. Tenho pensado muito em Ubiratan, o aliado dos meninos de Se eu fechar os olhos agora, o velho professor comunista, vítima de torturas durante a ditadura de Getulio Vargas. Talvez ele esteja sinalizando que quer voltar. Mara, a suposta mãe do menino sequestrado de A felicidade…, é outra inquieta, emitindo sinais. Novamente, a mistura de história real e ficção, no que escrevo.  Mesmo a personagem mais, aparentemente, alienada, a Maggie de Boa noite a todos, tem raízes profundas nos acontecimentos que, voluntariamente ou não.

Poderia falar da sua participação no Salon du Livre de Paris, que acontece no mês que vem? A comitiva de escritores brasileiros contemporâneos inclui alguns dos autores que mais admiro. Somos 48 no total, representando a rica e diversificada literatura que se faz aqui no momento. Estou contente e lisonjeado em estar no meio de tantos craques. Já representei o Brasil na Inglaterra e no País de Gales, no México, na Holanda, na Alemanha e, mesmo, na França. Mas fazer parte deste grupo reunido para o Salão do Livro de Paris… Quero ajudar a mostrar que, desde a aparição dos escritores americanos no início e meio do século XX, como Faulkner, Hemingway, Mailer, Steinbeck, Fitzgerald, entre vários, nenhum outro país teve tantos e tão bons escritores, numa mesma época, como o Brasil nos dias atuais.

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Nas fotos: Edney entrevista Isabel Allende em Paraty (RJ), títulos dos autor e tradução de Se eu fechar os olhos agora para o holandês. 

Alexandre Staut é escritor e editor da São Paulo Review