Por Ricardo Bellissimo *

Com um espírito altaneiro e muito bem azeitado por uma vida atribulada de trabalhos e amores em todos os países onde morou, desde a Suíça, Alemanha, Estados Unidos à Inglaterra, o dramaturgo carioca Gerald Thomas manteve, como um verdadeiro cidadão do mundo, sempre íntegra as suas posturas políticas e culturais.

Permanece, por isso, um raro artista que mantém a mesma coerência entre o que pensa, o que fala e o que faz e, consequentemente, seu teatro jamais se rendeu às famigeradas leis do mercado.

Com mais de trinta peças encenadas, compostas entre trilogias, tetralogias e óperas, ele conviveu ainda, nos anos 80, com o escritor e dramaturgo irlandês Samuel Beckett, de quem encenou vários textos, afora a sua parceria com o autor alemão Heiner Müller e o compositor americano Philip Glass.

Antenado ainda como poucos na arte de vanguarda, Gerald logo se configuraria como uma presença ímpar à cena teatral brasileira, desde as primeiras encenações de sua Trilogia Kafka, em 1988. Por meio de sua linguagem crítica e ousada, tecida por meio de uma narrativa não linear, ele também haveria de influenciar gerações sufocadas pelo desconforto das injustiças sociais que persistem assolar a nossa sociedade.

Atualmente avesso quando questionado sobre questões culturais e políticas referentes ao Brasil, onde, inclusive, já sofreu um processo que lhe consumiu cotas consideráveis de sua saúde mental e financeira após mostrar a bunda para uma plateia que o vaiou com a montagem de sua ópera Tristão e Isolda, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 2003, que se sentira incomodada ao ver uma mocinha se masturbando no palco e igualmente incapaz de conceber os protagonistas Tristão e Isolda transmudados em pacientes de um Freud cocainômano, que os auxiliaria a superar as impossibilidades impostas pelo destino a fim de evitar que celebrassem o amor apenas na eternidade da morte.

Parece até piada que, num país como o Brasil, onde reina a hipocrisia, mostrar a bunda possa se caracterizar como um ato obsceno. Afinal, como declarou Gerald na época, “a própria bunda é o cartão-postal deste país”.

Nesta entrevista por email à São Paulo Review, Thomas fala sobre a autobiografia que vai lançar, seu trabalho como ilustrador, seu novo projeto teatral, conspirações internacionais, sexo, redes sociais, entre outros assuntos.

Você está atualmente preparando uma releitura de sua peça Terra em Trânsito, encenada em 2007 e que trazia a personagem de uma diva viciada em cocaína e que alimentava um ganso verborrágico, alucinado pelos tempos de Woodstock, para depois fazer uma espécie de foie gras autofágico. Pretende, com isso, elaborar mais um manifesto contra a frivolidade dos tantos pseudointelectuais que fazem releituras anacrônicas de grandes pensadores, bem como propor uma nova crítica a essa onda de celebridades efêmeras, com minhocas na cabeça, e que se multiplicam como cogumelos no pasto após a chuva? Como vê esse fenômeno das celebridades instantâneas? É uma idiotização que tende a se perpetuar no mundo, especialmente na sociedade brasileira com o respaldo de programas como o BBB e as novelas globais? Olha, não me guio pelo BBB ou novelas. Não moro no Brasil. Também estou preparando The Bridge, uma espécie de ‘ponte’ entre Hamlet e The Tempest aqui em Nova York para a estreia de um novo teatro e uma nova Cia. de Teatro (como foi com a London Dry Opera Company em 2011). No meu caso, não vejo as peças como manifestos. As vejo como um vômito cultural de alguém que sabe demais – uma espécie de ‘infiltrado em diversas culturas’ – vivendo um pesadelo e um pessimismo louco. Sei que não temos jeito. Sei de tudo. E quando digo ‘tudo’ é esse pós – tudo mesmo!!! Isso vai desde os faraós e os gregos até como funciona um Amtrak Train (empresa estatal federal de transporte ferroviário de passageiros dos EUA) que descarrilou ontem entre NY e Philadelphia. Sei que toquei algumas vidas (como no caso de EletraComCreta e Trilogia Kafka – que foi quando o Haroldo de Campos entrou na minha vida e começou a escrever a meu respeito e publicou livros a meu respeito). E herdei essa porra toda de Beckett, ou um único personagem de Beckett: o Lucky, em Godot. Fora isso, acho que essa ‘idiotização’ não é de hoje! Em cada era, em cada época, achamos que estamos entrando (ou estamos no meio) de uma ou outra espécie de banalização.

Como analisa a crítica literária e a crítica dramatúrgica no Brasil nos dias de hoje? Ela já foi melhor e mais abrangente? E quais os principais aspectos, em seu entendimento, que uma crítica sensata deve saber abordar? Por favor, não me pergunte isso!!!! Quando estou no Brasil, estou enfiado num teatro ou em um hotel. Não vou a teatros, não vou a shows, não vou nem ao banheiro porque reescrevo, faço a luz, o som, dirijo os atores e tomo conta daquela ObraDeArteTotal.

Como vê a adaptação literária que está sendo vertida atualmente para o teatro, tanto no Brasil como no exterior? Como dramaturgo, qual é o maior problema que percebe com as adaptações de um livro? Mesma resposta citada acima. Se quer uma entrevista honesta, venha pro ‘meu’ mundo e deixa o ‘teu’ de lado. Não sou crítico teatral.

Com tantas óperas em seu currículo, encenadas de modo inovador e ousado, e com ampla aceitação no exterior, o que atribui o fato de que esse gênero ainda continua tão desmerecido ou até ignorado no Brasil? Também não sei e também fico admirado. 

Você lançou em 2012 o livro Arranhando a Superfície (editora Cobogó), com ilustrações que fez na década de 70 para oThe New York Times, Vanity Fair, entre outros veículos. Sua familiaridade com a pintura possui alguma influência no modo como imagina as cenas ou mesmo a própria cenografia para as suas peças? Sim, totalmente. Tudo começa com sketches, com desenhos de cena e de luz, etc. São os cadernos de direção que, um dia, serão lançados.

Em relação ao universo das artes plásticas, acha que hoje em dia elas se transformaram num método primoroso para a lavagem de dinheiro? Não sei de detalhes. Lavagem ou não, os ‘players’ de hoje (e quem levanta a mão na Sotheby’s e Christies) agora são outros. Vem do petróleo, dos Emirados Árabes, vem dos russos, vem de gente que não entende porra nenhuma do que está comprando. Mas ao mesmo tempo, há décadas, eram os texanos querendo algo ‘rosa’ para combinar com seus sofás rosas.

O absurdo inerente que dá vida e pulsão ao seu teatro parece sintomático de que chegamos ao limite da incomunicabilidade entre os seres humanos, sobretudo numa época em que as pessoas mais parecem se relacionar virtualmente do que por meio do contato físico. Acredita, assim, que estamos cavando cada vez mais a cova dessa incomunicabilidade? Como ‘incomunicabilidade entre os seres humanos’? Esta entrevista é resultante de como a mídia social (portanto a comunicabilidade) hoje em dia é imediata. Todo mundo acha todo mundo. Todo mundo aborda todo mundo e, via Instagram e Twitter, sabem em tempo REAL o que você está bebendo, comendo, fodendo ou cheirando. Agora, considero essa mídia social uma PESTE sim, na medida em que promove um falso estrelato a anônimos mundo afora, uma falsa fama, uma falsa atenção. A pena é que a arte ‘ao vivo’ se perde no meio disso tudo.

Paralelamente a essa questão, a ausência de uma linearidade narrativa muitas vezes presente em suas peças é mais um indício dessa mesma incomunicabilidade? Ou, antes, é uma fórmula dramatúrgica que vislumbrou para poder vomitar, no palco, críticas aleatórias e diversas a um mundo dominado pela barbárie e pela corrupção? Bem, não sei o que responder, já que discordamos sobre a tal ‘incomunicabilidade entre os seres humanos’. Sim, como disse antes, eu vomito. Mas vomito também alguns bilhetes com múltiplos sentidos. E quem entendeu, ótimo. Quem não entendeu, riu. Ou saiu nos primeiros 10 minutos!!!

Já se disse que o seu teatro possui uma proposta na qual a identificação emocional seja totalmente suprimida, e com isso apresenta o pensamento como processo e o próprio processo como tempo e espaço da cena. Fale um pouco mais sobre isso. E, uma vez suprimida essa identificação emocional, como então o processo catártico poderia se adequar ao seu teatro? Ou você propõe justamente uma experiência inovadora com a catarse? Ou, ainda, a catarse teatral morreu para você? E qual é a sua relação com a catarse artística? Não é verdade. Como você explica as enormes e longas lágrimas depois de uma peça minha? Será por que o ator diz: ‘Estou retumbando às margens do Rio Ipiranga há tanto tempo! It’s amazing!!!!’, e daí entra a música do Philip Glass e ele se enforca e as pessoas estão comovidas? Você não notou, em qualquer peça minha, que tem cenas como a do Nanini em Circo de Rins onde alguns momentos são comoventes? Ou em qualquer outra peça? Tenho que seduzir as pessoas para que entrem no meu pesadelo. E sei, como um bom Mephisto, fazer isso com a cena total.

Tanto as suas peças, como a sua figura pública, batalham constantemente contra a hipocrisia social. Nesse sentido, vê como sintomática a hipocrisia no Brasil o crescimento da bancada evangélica, e que em 2013 elegera ainda o pastor Marco Feliciano (PSC-SP) para presidir justamente a Comissão de Direitos Humanos?  De novo, o Brasil. Vejo a hipocrisia aqui, vejo no Reino Unido, na França, até na Suíça (onde também moro). Está nas pessoas. Está em nossas pobres naturezas, e se procria quando o ambiente é medíocre. Nada sei sobre os nomes acima.

A sua experiência como michê aos 14 anos, em Nova York, contribuiu de alguma forma para que fossem posteriormente construídos alguns de seus personagens? Acredita ainda que, através do sexo, é possível conhecer a verdadeira índole de uma pessoa? Claro que contribuiu!!! Era a mais pura e puta hipocrisia! Eram muitos casais evangélicos que, de segunda a sexta, seguravam as mãos de seus filhos antes da comida e agradeciam a Jesus o prato de hoje! E, aos sábados e domingos, escatologia total com menores!!! Sim, através do sexo se conhece alguém. E MUITO, MUITO bem!!!

E quanto às orgias, ainda as pratica? Ou guarda apenas saudade dessa época? De vez em quando rola. Mas também rola certa exaustão, um certo cansaço da repetição. Afinal, é quase sempre um ritual, não?

Aos hackers o mundo pertence. Por meio desse postulado, cidadãos como Edward Snowden, na sua opinião, são uma esperança para minar o desmando dos governos e das grandes corporações? ODEIO o Snowden. Se ele tivesse sido honesto e não egocêntrico ou oportunista, teria TAMBÉM divulgado dados sobre a Rússia e a China. Mas não o fez. Quis a atenção para ele. Diferente do Assange. E nesse hiato criado por ele, formalizou-se um HORROR que começou quando Bush invadiu o Iraque e, em 2004, formou-se o ISIS (sigla, em inglês, do grupo terrorista Estado Islâmico do Iraque e do Levante) que, coincidentemente, se consolidou durante a época do Snowden. Claro que o buraco é mais embaixo e podemos ir às raízes dos xiitas contra sunitas contra curdos contra alauitas, mas podemos também culpar os impérios que geraram fronteiras geopolíticas que essas tribos não respeitam. Mas esta é uma outra entrevista, num outro momento.

Concebe alguma relação mais íntima entre a arte e a psicanálise? E em que ponto, para você, essas áreas melhor conseguem dialogar? Não penso dessa maneira. Li todo o Jung e a ligação disso com aquilo. Assim como Deleuze, aquilo com aquilo outro. Como estou justamente lançando a minha autobiografia em breve (Let’s Just Say It All Started), falo dos Lacões, das Sontagas, dos Barthardos and so on… e te digo com alguma firmeza: o autor que, algum dia, conseguir EXPLICAR a sua obra, ou nasceu para vender verduras ou deveria estar numa escola lecionando merda para crianças.

Você ainda faz análise? E qual é a sua relação com a terapia? Sim, terapia. Uma vez por semana. Não como e nem tenho vontade de comer o meu psicanalista australiano. É muito velho, tadinho!!!!

Para toda pessoa minimamente interessada em psicologia, os sonhos possuem um papel relevante na vida. Como é o seu vínculo com os sonhos, já que suas peças em geral apresentam uma atmosfera bastante onírica? E, por acaso, já teve sonhos que lhe inspiraram algum projeto concreto na realidade? Juro que não sonho. Já falei isso num programa da Gabi (Cara a Cara, acho que em 1992). E, se sonho, esqueço logo em seguida. Dos poucos que me lembro, eram totalmente reais, com nome, data e lugares reais. Muito boring!!!

Como pensaria em um programa pedagógico realmente efetivo para se incentivar a leitura nas escolas brasileiras, sobretudo para que ela não se torne uma obrigação tediosa? Por favor, me dê uma década para pensar e te devolvo!!!

Na sua opinião, acha que grande parte do público leitor brasileiro deixa de ler pelo preço muitas vezes elevado de um livro ou é mesmo falta generalizada de hábito? E o que poderia ser feito, na sua concepção, para que o livro possa se tornar um artigo de amplo acesso a vários estratos sociais? De novo, o BR. Não sei nada. Não sei de nada. Sou surdo.

*

Ricardo Bellissimo é escritor, jornalista e historiador, autor de Sufoco e Negro Amor, entre outros

Tags: