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Por Raimundo Neto *

Alexandre Staut, editor da São Paulo Review, enviou mensagem cobrando a resenha do livro que ele me entregou há meses. A cobrança alfinetou a memória: Como eu pude esquecer por tanto tempo? Minhas lembranças estão sempre rabiscadas em algum canto, guardada em notas de papel em pontos estratégicos; o celular está sempre armado com um grito monótono para alertar minha memória sobre compromissos e tarefas em sua maioria não tão importantes.

Iniciei o Restinga, do Miguel Del Castillo, há quase dois meses. Duas semanas depois do início da leitura, o livro estava lido, detalhes rabiscados por mim em folhas pautadas na última página. Tranquei o livro numa gaveta e só o resgatei quando o Alexandre chamou: Quero a resenha do livro do Miguel.

Na minha memória existe um quarto cuja chave é o afeto. Tudo que mobiliza afeto em mim arranja um jeitinho de guardar-se por lá. Inescapavelmente.

Outro dia, li uma resenha que escrevi no site do escritor que teve seu livro resenhado aqui na São Paulo Review (e na página do Facebook da editora), e fui mencionado como crítico literário. Digo sempre (para mim mesmo e para todos os Eus que já ousei tentar ser) que jamais serei crítico literário. Que tudo o que me move é o afeto. Sabe aquela máxima Clariceana: Ou toca ou não toca. Tudo o que escrevo é sobre o que me levou ao fundo de mim, saiu da superfície e então: mergulho, água, inundação repentina, líquidos vazando, choro, engasgo, a pele rasgada, uma escuridão sem saída, o fundo do poço, as unhas cravadas no peito, o coração derramado, o impossível.

A questão é que Restinga:

É um livro escrito por um jovem escritor contemporâneo que sabe o que é escrever, sabe o que técnica, sabe o que é Literatura. As palavras são contadas: o sentido de cada linha que compõe cada um dos 11 textos é preciso.

Em Restinga, os personagens estão dentro de uma viagem a um destino conhecido, mas ainda assustador. A lembrança é braço comprido do passado, que não se desfaz, não cansa, que se desdobra até o presente. Há um clima de passado desfeito, solto, que vai e volta; um oceano extenso cortado pelo navegar de um navio que viaja sem pressa.

A escrita precisa de Castillo compõe um clima de acontecimento vencido a ser refeito, uma história partida que precisa ser recontada, não se sabe o porquê, “mas é algo central que organiza todo o resto”. As presenças são narradas por meio de ausências: lembranças resgatadas em uma viagem; cenas reconstituídas, com palavras, de carinhos e cuidados antigos (oceano e viagem); o que sabemos e conhecemos sobre quem amamos é só o que somos capazes de lembrar

O cotidiano é contado e recontado sem linearidade: Uma história de tortura, uma mãe presa e torturada durante a ditadura chilena; e ainda: a banalidade de uma conversinha solta entre familiares e a impressão de uma tensão que se repete há anos e percorre o fio puído que une todos os laços sanguíneos e a frágil obrigação de permanecer; um irmão vivendo com palavras caladas, quando a surdez é um fim. Um filho resgata memórias de uma viagem a Cancun, e só um nome existe: Juan: um único nome dá significado à lembrança. Um jovem acompanha Luíza pelo Facebook, e uma citação de  Javier Marias (“a frágil roda do mundo é empurrada por desmemoriados que ouvem e veem e sabem o que não se diz nem sucede nem é cognoscível nem é comprovável.”) dá o tom do conto.

Em Restinga, os filhos da classe média descansam em colônias, os jovens viajam ao exterior, estão em transatlânticos, vivem na ponte Rio-SP, vivendo em seus bairros nobres; filhos que ganham carros blindados, e estudam em colégio espanhol do Morumbi. Os lugares marcam pessoas; as pessoas guardam lugares; os sentidos vão e voltam, na cabeça, nos passos.

Em Restinga, as cenas são de um RJ classe média, do Leme ao Oceano Atlântico, onde a memória dos personagens traz alguns medos antigos, empoeirados, medos revisitados, porque, no presente, há uma nova configuração: um filho com síndrome de Down, e o medo cristalizado; personagens cujos sonhos são registrados em cadernos tentando reinventar os sentidos, reparar um dano que existiu apenas em expectativas. Nos textos de Castillo há sempre uma relação a ser refeita e a memória é um resgate de muitos planos que talvez precisem ser refeitos

O livro Escrever imagens (editora SESC-SP) retrata a obra cinematográfica da romancista francesa Marguerite Duras, e apresenta textos e entrevistas de Duras sobre o seu cinema. Marguerite diz: “Há filmes que ficam, há filmes que se dissipam nas horas que se seguem à sua visão. É assim que eu sei que fui ou não ao cinema: na manhã seguinte, o que se tornou o filme visto na véspera, seu estado depois da noite, é o filme que eu terei visto. Às vezes, alguns filmes se declaram dois meses depois. A maioria dos filmes se perde.”

A minha relação com os livros é assim também: Há livros que ficam, que guardo no quarto dos afetos que carrego comigo, onde há luz, aconchego, onde moram meus resgates mais significativos e vivos. Se me perguntam: O que mora no fundo do teu peito?, respondo: Livros. E Restinga, maduro e cuidado, escrito por um novíssimo jovem escritor contemporâneo, elogiado de cabo a rabo no meio literário, ficou guardado do lado de fora.

Assim, a outra questão sobre Restinga é: Tranquei-o nas gavetas cuidadas de uma cômoda, fora de mim, e a lembrança veio num susto, e ficou na superfície dos meus afetos. Até a lembrança dizer-me que algo precisava ser reparado.

Restinga, de Miguel Del Castillo (Companhia das Letras, 128 págs.)

Avaliação: 

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(regular)

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Raimundo Neto é escritor. Colabora com a São Paulo Review

 

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