* Por Godofredo de Oliveira  Neto *

Sandro apareceu todo faceiro, remoçado. Começava vida nova, foi logo informando. Pediu um pão-de-queijo à moça do café da Faculdade de Letras. Parecia faminto. Cansei de pensar só em mim, o ciúme me rasgava por dentro, continuou, falando de boca cheia.  Jussara era um anjo, honesta, super inteligente, proativa mas ….não podia ver um cara bonito que logo se enrabichava por ele, ele ainda precisou. Agora cada um para o seu lado. Sandro , meu amigo de mais vinte anos, é professor titular de Belas Artes e especialista em arte africana. A alegria não vinha apenas do alívio pelo fim do relacionamento ( se é alivio de  verdade não deu para saber). Vinha de um convite que lhe fora feito. Ele vai compor a equipe internacional encarregada de analisar as obras de arte africanas que serão devolvidas pelos europeus aos países africanos, obras roubadas nas épocas coloniais. Dei-lhe os parabéns mas indaguei sobre a frase “ cansei de pensar só em mim”. Cara, ele sussurrou, olhando para o chão. O ciúme e a obra de arte têm a ver. A obra de arte liberta as tensões da alma. O prazer estético oriundo  de fontes psíquicas mais profundas vêm no segundo movimento. O primeiro movimento estético retira a gente da mesmice rasa do cotidiano. Sandro falava comigo mas parecia falar consigo próprio diante de um espelho. O problema é o narcisismo em relação ao objeto artístico. Quem olha se identifica com esse objeto. É o amor por si próprio. Nossos atos psíquicos são super estimados, meu chapa. E na verdade eu não amava loucamente a Jussara, amava a mim mesmo, ok? Sandro terminou a frase com um gesto no brinquinho imitando diamante nas duas orelhas. Quase os arrancava.

Como nessas ocasiões não há espaço para discordâncias na área do afeto e das desilusões amorosas, voltei ao tema mais importante: a devolução da arte africana aos seus legítimos proprietários. Os mares sobre os quais deslizaram os espoliadores europeus trariam  agora ao imaginário africano a criatividade dos seus ancestrais.

– Mas os africanos deverão elaborar uma re-apropriação simbólica de objetos que não viram há mais de duzentos anos, só para falar de épocas mais modernas, explicou Sandro.

Ele mostrou no celular a foto de uma magnífica estátua antropo-zoomorfa de madeira e de metal – talvez do século XVI, disse com voz de sabichão –  sobre a qual ia fazer um relatório de mais de cinquenta páginas.

A gente não sabe de que lado fica nesses casos. Do lado da Jussara ou do Sandro.

O magnífico ser híbrido, estrangeiro em terras europeias, volta agora estrangeiro a sua África. Tem que ser reapropriado! Jussara passou a ser uma estrangeira para mim, entende, cara. Ele já tinha dito essa frase uma vez numa feijoada em Copacabana. Olhei para ele fixamente, que cumprimentava e se pavoneava para um colega de cátedra. Imaginei naquela hora a Jussara com um rosto de leoa, dentes salientes, o corpo humano com asas e pés enormes. O que que você está olhando, perguntou Sandro, que já se despedira do professor. Nada, respondi, estava olhando o prédio da engenharia precisando de uma pintura. ( não falei da Jussara híbrida, claro). E imaginei o Sandro, de repente, com uma cara diferente, parecia uma hiena, o corpo meio curvado. Cheguei a examinar discretamente, numa ação ilógica beirando a loucura, se nele havia um rabo curto de hiena ( notei nos filmes e no zoo que hiena tem rabo curto). Mas não havia rabo nenhum, claro. Delírio meu. Qual é cara, tu tá esquisito me olhando assim!, ele observou meio indignado, alterando até a sua variante linguística. Sugeri então fôssemos à cafeteria da Escola de Belas Artes. E qual não foi a má surpresa. Jussara, também professora da Escola de  Belas Artes , tomava um suco de goiaba ( pela cor) no balcão. Os dois não se cumprimentaram. Dei os dois beijinhos de sempre nela , perguntei como ia a vida e o projeto de  Pós-Doutorado.

– Se esse teu amigo aí não atrapalhar mais a minha vida, vou sim para a Universidade Ca’ Foscari, em Veneza, passar uma ano, se Deus quiser, ela confirmou.

Daí o bicho pegou.

– Mas eu é que fui convidado pelo governo da França e da Itália para analisar obras de arte africanas, e não você, sempre ensinando bobaginhas para os alunos. E enfiando minhoca feminista na cabeça deles.

– Ok, Sandro……. Jussara disse tanto palavrão que não ouso repetir aqui por constrangimento. Nunca tinha visto ela nesse estado. Sandro também não ficou atrás. Não repito pelo mesmo motivo. Logo ele que era tão a favor do movimento feminista. Mas Sandro fez mais. Subiu numa cadeira e passou a dizer, teatral,  versos do Navio Negreiro, do Castro Alves:

 

Ontem a Serra Leoa,

A guerra, a caça ao leão,

O sono dormido à toa

Sob as tendas da amplidão!

Hoje… o porão negro, fundo,

Infecto, apertado, imundo

Tendo a peste por jaguar

E o sono sempre cortado

Pelo arranco de um finado

E o baque de um corpo no mar

(…)

Ontem plena liberdade

A vontade por poder

Hoje…cúmulo da maldade

Nem são livres para morrer

 

Alunos aplaudiram, muitos escondiam o riso com as mãos, o vendedor fez um rodopio com o dedo em volta da orelha me olhando. Não sei quem é mais louco, pensei. Jussara se manteve ouvindo o ex-marido agora poeta com cara de enfado. Mas não só ela. Um cachorro desses que vivem perambulando pelo Campus sentiu-se incomodado. Aproximou-se do Sandro quando da declamação e pôs-se a latir após a pronúncia da última sílaba dos versos.  A cada ão, por exemplo, um auauauauauuuuu, liberdade auauauauau e assim por diante. Como um eco poético, ou um coro do teatro grego. A plateia morria de rir. Só Sandro não.

– Você está cada vez mais ridículo, velho gagá, gritou Jussara.

Sandro desceu do seu púlpito improvisado, alguns aplaudiram, e voltou a discutir com a ex-esposa.

Deixei os dois terçando armas, dei uma desculpa sobre o meu horário de aulas e fugi dali. Os mortos do oceanos, os do “ baque de um corpo no mar ”, receberão a sua memória artística. O mar lhes é favorável agora. Valores sagrados poderão ser vistos pela juventude africana. Isso é mais importante do que o caso do Sandro e da Jussara. Logo cada um estará com um novo par. Conheço bem eles.

*

Godofredo de Oliveira Neto é contista e romancista, autor dos romances  O Bruxo do Contestado, Menino oculto, Marcelino, Amores exilados e Grito, entre outros. Menino oculto recebeu um das estatuetas na premiação do Jabuti/2006 e, foi, com Amores exilados, publicado na  França. Grito (2016) foi premiado como romance do ano pela União Brasileira de Escritores e pela Academia  Catarinense de Letras. Marcelino acaba de ser publicado também em Portugal, na Feira Literária de Óbidos. Ana e a margem do rio, com o selo de Altamente recomendável pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, teve edição na Bulgária. O autor é Professor Titular de Literatura Brasileira da UFRJ.

 

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