Três

O que queremos de nossas mães na infância? Submissão completa.

Ah, é muito bacana e racional e respeitável dizer que uma mulher tem todo o direito à sua própria vida, às suas ambições, às suas necessidades e por aí vai — é o que eu mesma sempre reivindiquei —, mas, na infância, não, a verdade é que se trata de uma guerra desgastante, a racionalidade não entra no jogo, nem um pouco, tudo que você quer da sua mãe é que ela admita, de uma vez por todas, que é apenas a sua mãe e mais nada, e que a batalha dela com o restante da vida está encerrada. Ela precisa depor as armas e se render a você. E se ela não faz isso, a guerra é para valer, e eu e minha mãe vivíamos em guerra. Só quando me tornei adulta fui capaz de admirá-la de verdade — especialmente nos últimos e dolorosos anos de sua vida — por tudo que fez para cavar algum espaço para si nesse mundo. Quando eu era jovem, sua recusa em se submeter a mim me causava dor e confusão, ainda mais porque, no meu entender, os motivos mais comuns para esse tipo de recusa não se aplicavam.

Eu era sua única filha, ela não tinha emprego — não naquela época — e mal falava com o resto de sua família. Do meu ponto de vista, tempo era o que ela mais tinha. Mas mesmo assim eu não conseguia obter sua total submissão! Minha primeira impressão a respeito dela era a de uma mulher planejando uma fuga, de mim, do próprio papel de mãe. Eu tinha pena do meu pai. Ainda era um homem mais ou menos jovem, que a amava e desejava mais filhos — era a discussão diária deles —, mas nesse assunto, como em todos os outros, minha mãe se recusava a ceder. A mãe dela tinha dado à luz sete filhos, e sua avó, onze. Ela não estava disposta a revisitar aquele tempo. Acreditava que o meu pai queria mais filhos para aprisioná-la, e quanto a isso ela basicamente estava certa, embora a prisão nesse caso fosse apenas uma outra palavra para o amor. Ele a amava tanto! Mais do que ela sabia ou se importava em saber, ela era uma pessoa que vivia em seu próprio mundo onírico, que presumia que todos a seu redor sentiam o mesmo que ela, o tempo inteiro. Sendo assim, quando ela começou lentamente, e depois cada vez mais rápido, a exceder meu pai em termos intelectuais e pessoais, foi natural que ela esperasse que ele estivesse passando pelo mesmo processo ao mesmo tempo. Mas ele continuou sendo o que sempre foi. Cuidando de mim, amando-a, tentando acompanhar, lendo O manifesto comunista do seu modo vagaroso e diligente. “Algumas pessoas carregam consigo a Bíblia”, ele me dizia com orgulho. “Esta é a minha Bíblia.” Causava impressão — tinha como objetivo impressionar minha mãe —, mas eu já tinha percebido que aparentemente ele estava sempre lendo esse livro e não muito mais que isso, em todas as aulas de dança ele o levava, só que nunca passava das vinte primeiras páginas. No contexto do casa- mento, era um gesto romântico: eles se viram pela primeira vez em uma reunião do Partido Socialista dos Trabalhadores em Dollis Hill. Mas até isso consistiu em um certo mal-entendido,

pois meu pai tinha ido para conhecer belas garotas de esquerda que usavam saia curta e não tinham religião, enquanto minha mãe tinha realmente ido por causa de Karl Marx. Minha infância transcorreu no abismo que foi se abrindo. Assisti à minha mãe autodidata ultrapassar meu pai com rapidez e facilidade. As estantes da nossa sala de estar — que ele havia construído — se encheram de livros de segunda mão, livros didáticos da Open University, livros de política, livros de história, livros sobre raça, livro sobre gênero, “Todos os ‘ismos’”, como meu pai gostava de chamá-los sempre que um vizinho dava uma passada e via aquele conjunto espantoso.

Sábado era seu “dia de folga”. Folga do quê? De nós. Ela precisava avançar na leitura dos seus ismos. Depois da aula de dança, eu e meu pai precisávamos seguir em frente de alguma maneira, encontrar algo para fazer, ficar fora do apartamento até a hora do jantar. Criamos o ritual de pegar uma sequência de ônibus em direção ao sul, bem depois do rio, até a casa de meu tio Lambert, irmão da minha mãe e confidente do meu pai. Ele era o irmão mais velho da minha mãe, a única pessoa que conheci daquele lado da família. Tinha criado a minha mãe e o restante de suas irmãs e irmãos quando todos ainda viviam na ilha, depois que a mãe deles veio à Inglaterra trabalhar como faxineira em um asilo. Ele sabia com o que meu pai estava lidando.

“Dou um passo na direção dela”, ouvi meu pai reclamar um dia, no auge do verão, “e ela dá um passo para trás!”

“Essa mulé não tem jeito. Sempre foi assim.”

Eu estava no jardim, no meio dos tomateiros. Era uma roça, na verdade, nada era decorativo ou destinado à admiração, tudo servia para comer e crescia em fileiras longas e retas, amarradas em varas de bambu. No final da plantação havia uma latrina, a última que vi na Inglaterra. Tio Lambert e meu pai ficavam sentados em espreguiçadeiras nos fundos, fumando maconha. Eram

velhos amigos — Lambert era a única outra pessoa na foto de casamento dos meus pais — e trabalhavam na mesma área: meu tio era carteiro, e meu pai um gerente do setor de entregas do Royal Mail. Tinham em comum o senso de humor ácido e uma falta de ambição que minha mãe considerava uma causa perdida, nos dois casos. Enquanto fumavam e lamentavam tudo que não tinha jeito na minha mãe, fiquei passando os braços pelos tomateiros, deixando que se enroscassem nos meus pulsos. Muitas das plantas de Lambert eram ameaçadoras para mim, tinham o dobro da minha altura, e tudo o que ele semeava crescia desvairada- mente: um matagal de galhos e capim alto repleto de cabaças de proporções obscenas. O qualidade do solo é melhor em South London — em North London temos argila demais —, mas na época eu não sabia disso e tinha ideias confusas: achava que quando visitava Lambert estava visitando a Jamaica, o jardim de Lambert era a Jamaica para mim, tinha o cheiro da Jamaica, e lá se comia doces de coco, e mesmo hoje, na minha memória, faz calor sempre no jardim de Lambert e eu estou com sede e com medo dos insetos. O jardim era estreito e comprido, virado para o sul, e a latrina era contígua à cerca do lado direito, de modo que se podia ver o sol desaparecendo por trás dela, ondulando o ar ao cair. Eu queria muito ir ao banheiro, mas tinha decidido segurar a vontade até estarmos de volta a North London — eu tinha medo da latrina. O piso era de madeira e coisas cresciam entre as frestas, folhas de capim, e também cardos e dentes-de-leão que roçavam o joelho quando você subia no assento. Teias de aranha interligavam os cantos. Era um jardim de abundância e decomposição: os tomates eram maduros demais, a maconha era forte demais, os pulgões se escondiam embaixo de tudo. Lambert vivia ali completamente sozinho, e eu sentia que aquele era um lugar para morrer. Mesmo naquela idade, eu achava esquisito que meu pai precisasse viajar treze quilômetros até a casa de Lambert em busca de conforto, quando parecia que Lambert já tinha sido vítima do tipo de abandono que meu pai tanto temia. Cansada de andar entre as fileiras de vegetais, cruzei o jardim de volta e vi os dois homens escondendo os baseados inutilmente com a mão.
“Entediada?”, perguntou Lambert. Confessei que estava. “Teve um tempo que essa casa era uma criançada só”, disse Lambert, “mas as criança tem criança agora.”
A imagem que me veio à mente foi a de crianças da minha própria idade segurando bebês no colo: era um destino que eu associava a South London. Sabia que minha mãe tinha saído de casa para escapar daquilo, para garantir que nenhuma filha sua se tornasse uma criança com uma criança, pois qualquer filha sua faria mais do que apenas sobreviver — como tinha sido o caso dela —, uma filha sua iria florescer, adquirindo uma profusão de habilidades inúteis como o sapateado. Meu pai me estendeu a mão e subi no seu colo, cobrindo sua careca com uma das mãos e sentindo os fios esparsos de cabelo molhado que ele usava para cobri-la.

“Tímida, é? Não vai me dizer que fica tímida com o tio Lambert.”

Os olhos de Lambert eram injetados e suas sardas eram como as minhas, só que salientes; seu rosto era redondo e simpático, com olhos castanho-claros que confirmavam, supostamente, o sangue chinês na árvore da família. Mas eu ficava tímida diante dele. Minha mãe — que nunca visitava Lambert, a não ser no Natal — sugeria que eu e meu pai o fizéssemos com uma estranha insistência, embora sempre com a ressalva de que nos mantivéssemos alertas, nunca permitindo que fôssemos “tragados de volta”. Para o quê? Me contorci em volta do corpo do meu pai até alcançar suas costas e enxergar o pequeno tufo de cabelos compridos que ele mantinha na nuca, determinado a não perdê-los. Embora ele ainda estivesse nos trinta, eu nunca tinha visto meu pai com a cabeça cheia de cabelos, nunca o tinha visto loiro e nunca o veria grisalho. O que eu via era aquele castanho falso que ficava nos dedos se você tocasse, e cuja origem eu tinha descoberto uma vez, uma lata redonda e rasa que permanecia destampada na borda da banheira, com uma rodela marrom e oleosa preenchendo o contorno e um círculo vazio no meio, que nem meu pai.

“Ela precisa de companhia”, ele se queixou. “Um livro não serve, né? Um filme não serve. As pessoas precisam de uma companhia de verdade.”

“Essa mulé não tem jeito. Eu sabia desde que ela era pequena. A cabeça dela é dura como aço.”

Era verdade. Ela não tinha jeito. Quando chegamos em casa, ela estava assistindo a uma conferência da Open University, bloco de notas e lápis na mão, linda, serena, encolhida no sofá com os pés descalços debaixo do traseiro, mas assim que se virou eu percebei que estava incomodada, tínhamos retornado cedo demais, ela queria mais tempo, mais paz, mais sossego para poder estudar. Éramos os vândalos do templo. Ela estava estudando sociologia & política. Não sabíamos por quê.

*

Ritmo louco, de Zadie Smith (Companhia das Letras, 528 págs., tradução de Daniel Galera)

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