Preparando as malas

* Por Nilma Lacerda *

O que cabe na mala? Roupas para usar e para doar, sapatos, cosméticos, livros, remédios mais necessários, presentes. Afetos, sustos, as expectativas dos reencontros. Não é a primeira vez da viajante nesta cidade. Conhece um pouco suas manhas, sabe do enorme sebo na Plaza de Armas, os livros usados expostos em bancas e estantes sobre o piso secular de madeira. Conhece os balcões e grades trabalhadas em madeira, o azul celeste da tinta que os reveste, os claustros dos conventos, o Palácio dos Capitães Gerais. Aprecia as caminhadas no Malecón, a arquitetura apaixonante, a Giraldilla zelando pela cidade, as ruínas.      

Rio de Janeiro, preparando as malas para Havana.

Nise da Silveira foi presa porque pensava e escrevia. Por isso também é que foi solta. Companheira de prisão de Graciliano Ramos, escritor brasileiro que narra de forma admirável, nas memórias de infância, a aventura de sua alfabetização. As impossibilidades de uma escola interiorana no início do século são deixadas para trás no momento em que o menino encontra um livro de ficção. Aprende a ler da forma como os astrônomos reconhecem os astros no céu e empresta aos sinais da página branca os sentidos que servirão à carta do viajante.

Tenho também minha carta de viajante, nesta tarefa que me deu Emilia Gallego Alfonso. Tarefa para uma vida, acompanhar a navegação da palavra escrita na América Latina. Esta sub-América, cujos países -revelava um relatório em 1901 -tinham todos tratados comerciais com os Estados Unidos, Inglaterra, França e Alemanha, mas nenhum tinha tratado com seus vizinhos. “A América Latina é um arquipélago de pátrias bobas, organizadas para o desvínculo e treinadas para desamar-se.”, resume Eduardo Galeano, em O Século do Vento.

Entre tantas imagens, La Habana é também a imagem da “Tormenta del siglo”, “del agua”, a onda gigantesca que caiu sobre a cidade em 13 de março de 1993, devida ao fenômeno El Niño, e em pouquíssimos minutos arrasou a vida de muita gente. Emilia Gallego tinha acabado de subir ao segundo andar de sua casa para pegar um livro e desceu aos tropeções, atrás do grito desesperado da amiga. Ampara a mãe anciã, correm para a porta. A cachorrinha é a primeira a sair, e já sai a nado.

 La Habana, 20 de novembro de 1999.

O Capitólio Nacional de Cuba. Nós, participantes do Congresso Internacional Lectura’ 99, tiramos retratos em suas escadas. Angela, Ana Lúcia e eu encomendamos ao cajonero um retrato de nossa alegria. Com seu cajón -uma Kodak de 1900! -nos dá em seguida a foto com a legenda: Cuba, Capitólio.

Entro no edifício -herança grandiosa da humanidade. Não tenho nem tempo de me emocionar e dou um trompaço na base de uma coluna. Rasgo as meias, a pele fica esfolada. O Capitólio: que esplendor! Quanto sangue para levantá-lo! Esta estátua, a República: que engenho mais pesado.

Nesta cidade que me acolhe ao mesmo tempo como mãe possessiva e amante permissivo, que palavras tenho senão as de Emilia, não a Dickinson, mas a Gallego?

Sei que toda voz pode se guardar

no fundo de um jarro em pedaços;

que as flores podem, por sua vez, picar também às abelhas;

que a razão é uma luz que às vezes emudece

pelo obscuro encanto de uma fada vingativa;

sei que uma pedra pode arrojar-se além das nuvens

sem a força impulsora de meu braço;

e o que é ainda mais incrível,

sei que embora tenha as asas partidas

uma ave é capaz de se sustentar no ponto mais alto do céu.[1]

Uma ave não pode se sustentar no mais alto do céu com as asas partidas– é o que nos diz a lógica. A poesia torna viáveis as impossibilidades da lógica. A palavra escrita abre a porta do baile a toda gente, baile de desejo, justiça, e sal. O sal trazido no vento, o vento que bate no rosto, o rosto dos que navegam, o rosto dos que vão ao cais, o rosto dos que sabem que a palavra escrita é sal e veneno, que cura porque arde, que segura porque aperta.

São esses que vão tomá-la como amante, inscrever em seu corpo de letras e ausências o fogo e a devastação de seu desejo.

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[1]No original: “Yo sé que toda voz puede guardarse / en el fondo de un jarrón en ruinas; / que las flores sí pueden, muy bien, picar a las abejas; / que la razón es una luz que a veces enmudece / por el oscuro encanto de una hada vengativa; / que una piedra puede remontarse tras las nubes / sin la fuerza impulsora de mi brazo; / y lo que es aún más increíble,/ que una ave puede sostenerse en lo más alto / con las alas partidas”. Trad. Nilma Lacerda

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Nilma Lacerda é autora de Manual de Tapeçaria, Sortes de Villamor, Pena de Ganso, Cartas do São Francisco: Conversas com Rilke à Beira do Rio. Professora da Universidade Federal Fluminense e também tradutora, recebeu vários prêmios por sua obra, dentre os quais o Jabuti, o Prêmio Rio e o Prêmio Brasília de Literatura Infantojuvenil

 

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