* Por Maurício Vieira *

Na Flipoços deste ano, em Poços de Caldas, tive o prazer e a sorte de assistir à palestra do poeta e professor Antônio Carlos Secchin, que interpretou um poema de viés biográfico de João Cabral.  Notoriamente avesso ao lirismo e a rompantes autobiográficos, João Cabral entretanto revelou no poema “A Descoberta da Literatura”, do livro A Escola das Facas, de 1980, o menino franzino que era, que lia romances de cordel para os trabalhadores do engenho da família em Pernambuco, sem o conhecimento e para o desgosto da Casa-Grande.

A palestra do professor Secchin, divulgando detalhes da vida de João Cabral, me auxiliou a conhecer mais sobre a vida que o poeta, para quem a intimidade era uma pedra, se permitiu revelar.  Estas pequenas revelações biográficas, por este que é um dos maiores estudiosos de sua obra, se de pouco impacto no conjunto da obra do poeta, que assim o queria, serviram para humanizar o poeta que encontra no mineral sua musa, que descreve o gozo durante o ato sexual como a mineralização dos corpos.  Pequenas anedotas sobre a vida de Cabral tiveram  função similar àquela que, num outro plano, a dona de casa busca ao ver um reality show, ou ao folhear uma revista de fotografias de pessoas famosas.  Este é um desejo comum a todos, de trazer os deuses para a terra para nos igualarmos a eles.

João Cabral, encerrado em pequenos fatos ou opiniões que chegam aos nossos ouvidos por vezes já com um viés negativo, e que somente servem para confirmar uma opinião por nós formada anteriormente, tornou-se um outro João Cabral, interessante, instigante, através desta seleção de dados biográficos, extremamente sutil e bem humorada, oferecida pelo professor Secchin, que tomou o cuidado não de vulgarizar ou escancarar a vida do poeta.

Quebrada esta primeira barreira, o professor nos ofereceu um poema, que se tivesse sido abordado no início da sua palestra, poderia ter encontrado resistências, sobretudo daqueles como eu, que achavam sua obra um tanto árida.  Cabral não gostava de música, havia reiterado o professor Secchin.  Isso eu já sabia, e me ajudava a afirmar que não era poeta para mim. Mas a forma como o professor utilizou este fato serviu, pelo contrário, para me deixar curioso e me oferecer uma pergunta. Se antes eu nem me dava ao trabalho de perguntar, agora eu já olhava na direção oposta.  O que o poeta que se autodenomina o anti-lírico, que escreveu uma anti-lira em homenagem ao lírico Manuel Bandeira por seus 80 anos, que torcia o nariz para as letras de música de Vinicius de Moraes, segundo Cabral um talento desperdiçado, que poderia ter sido o maior poeta brasileiro, pode oferecer a alguém que se posiciona no campo oposto, um poeta lírico, que fala de árvores, um acólito de Orfeu, como eu? O que este inimigo poderia me oferecer?  O que podemos aprender com aqueles que ao nosso ver são contrários ao que nós tomamos como ideal, como estética e ética pessoal, que compõe nossa identidade?  A resposta, iniciada com a abertura de pequenas incisões na pedra que é João Cabral, surge justamente através do poema “A Descoberta da Literatura”.

O poema nos remete à infância do menino “franzino” que se juntava aos de “letra analfabeta,” que lhe “traziam conspirantes/para que os lesse e explicasse/um romance de barbante” e que não temia ser visto pela Casa-Grande como um traidor das estruturas sociais. Ele, um “filho-engenho”, não poderia ficar contando histórias de cordel àqueles que são “muitas vezes meliantes”.  Seu sentimento de superioridade, revelado pelo fato de constatar que as histórias eram sempre muito parecidas, que “nada ou pouco variassem/nos crimes, no amor, nos lances,/e soassem como sabidas/de outros folhetos migrantes,” era sublimado pelo sentimento de igualdade ao sentar-se com eles à volta da “roda morta de um carro de boi”. O poema evoca a curiosidade e ousadia do menino, de atravessar as barreiras sociais, invisíveis mas palpáveis, para sentar-se, com aqueles que seriam seus supostos inferiores sociais, e ao redor daquela távola redonda partilhar fábulas em redondilha maior que não ser veriam deslocadas em meio ao conjunto de lendas arturianas. O poema contrapõe o orgulho do menino que percebe que “sem querer, imantara todos ali, circunstantes,” à humildade de querer ser apenas “puro alto-falante”. Contrapõe o medo de ver-se confundido com o gigante com a coragem supracitada. O poema finalmente contrasta João, o menino, que descobre a literatura, e Cabral, o homem, que descobre ou revela elementos biográficos que por sua própria escolha havia encoberto.

O poema é ato humanizador, que quebra barreiras, une opostos, e que a aula dada pelo professor Secchin nos permitiu vislumbrar de forma mais clara. Neste poema de opostos unidos, de filho-engenho e cassacos do eito (trabalhadores do engenho), de medo e coragem, de orgulho e humildade, de oposição entre estruturas métricas de cordel com rimas muito mais complexas do que as esperadas num cordel, em suma, a oposição cordel e literatura, tudo isto se senta à volta daquela “roda morta/de um carro de boi, sem jante” (aro da roda). São opostos, que se educaram pelo verso, ou poderíamos dizer, pelo inverso.

O menino, suposto traidor de sua classe, e os trabalhadores, estão unidos pela aventura no corpo do poema, que só ao final é cerceado por parênteses, para descrever a interrupção abrupta da aventura pela revelação ali sim de um traidor do arranjo anterior, e para marcar o contraste entre a roça, arena da aventura do menino fora de sua esfera social e também da aventura ficcional tão aguardada pela gente do campo, e a Casa-Grande, onde o poema adquire um tom de reprovação à afronta do menino e às narrativas descritas naquele meio “próprio dos cegos de feira”.  Note-se que apesar de todos estes opostos, e mesmo com o parêntese que marca a troca para o tom de reprovação, não há estrofes no poema.  Ele é uma só coluna ininterrupta de opostos atraídos.

A palavra “imantara” assim transcende o poema. Os temas do poema estão todos aglutinados graças a esta imantação.  Aqueles que ouviram o professor Secchin também ficaram imantados, graças à sua interpretação, da escola humanista, tão avessa a polarizações.  Foi uma lição para vencer os espaços por nós criados e que nos distanciam, e que atualmente se observa de forma histérica no cotidiano. Lembrei-me de meu professor no senior year na high school, que pela simples leitura de poemas de Yeats, Eliot, cummings e Frost, sem o auxílio de teorias, nos auxiliava na descoberta da literatura. A aula magna do professor Secchin me remeteu ao menino franzino que tinha aulas com nerds mas tocava baixo em bandas com gente que preferia as drogas, que sem ser gay escreveu um artigo no jornal da high school defendendo o direito de um rapaz gay se candidatar a ser Homecoming Queen. Esta aula me fez Cabralino e seguir lírico, ser pedra e seguir árvore, e assim sendo vencer os vãos que criam os opostos, para ser mais carne.

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Maurício Vieira é escritor, autor do livro de poemas Arvoressencias

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