* Por Stéphane Chao *

Quando o samurai chegou ao Templo das Nove Portas, no cume de uma montanha situada perto de Nara, descobriu os vestígios de um Jardim Zen – onde um riacho corria sem água e uma árvore crescia numa rocha. Como de costume, o mestre do monastério acolheu o visitante com um koan, uma sentença enigmática suscetível de provocar a iluminação interior.

“O universo é um Jardim Zen, onde uma simples vela ilumina a noite”, proferiu ele. Perplexo, o samurai apenas respondeu com um sorriso embaraçado, e para sua surpresa, foi convidado para escutar a predicação do Mestre, que reproduzia o famoso sermão silencioso de Buda.

Segundo a lenda, este último conduzira seus discípulos ao cume de uma montanha no intuito de levá-los até a iluminação, explicando que a vida era um sonho do qual eles deviam despertar. Colheu, então, uma flor e a fizera girar na brisa, sem falar uma única palavra. Provocou a incompreensão dos discípulos, com exceção de um deles, que lhe endereçara um sorriso misterioso.

No Jardim Zen, a árvore que crescia na rocha não dava flores e a brisa mal enrugava a superfície do riacho. No entanto, um ricto aparecia no canto dos lábios dos discípulos, um após o outro, comprovando assim o progresso deles no caminho da revelação.

O samurai era o único que se mantinha impassível. E, por isso, a predicação seguiu.

Quando caiu a noite, uma vela foi acesa. Após várias horas, o samurai percebeu que a chama irrisória talvez representasse a iluminação que os monges buscavam. Achou graça nisso e esboçou um sorriso. O sermão acabou.

Os raios do sol nascente tremiam no horizonte, quando expôs a razão de sua ida ao monastério. Confessou, assim, que era acometido por um mal quase incurável : o medo de morrer. Queria livrar-se dele, persuadindo-se do caráter ilusório da vida.

Até um monge não podia deixar de ter uma reação de desgosto diante de tamanha covardia da parte de um guerreiro, que devia respeitar o bushido, o código de honra do samurai. Ainda mais naquele momento, em que a poderosa frota mongol tinha acabado de zarpar em direção ao Japão, segundo as últimas notícias.

Alguns monges quiseram excluir o recém-chegado, o incentivando a morrer no combate para lavar sua honra. Porém, era tarde demais para juntar-se ao exército do Xogum, que já estava em pé de guerra. Outros chegaram a zombar dele, dando-lhe o apelido de “Dez-Portas”, referindo-se ao número de orifícios da mulher, e ameaçaram ultrajá-lo.

O próprio Mestre Zen riu dele: disse que numa existência anterior, ele fora um eunuco, que se submetia ao desejo sórdido dos guerreiros, apesar de faltar-lhe uma “porta”.

No entanto, os ânimos se acalmaram e a razão acabou falando mais alto. Assim, um monge-médico diagnosticou que o qi, ou “sopro vital” do samurai era corrompido. O mal era grave, mas existia um remédio: libertar o qi de seu corpo, para que este se regenerasse ao se misturar com o sopro cósmico, o qual circulava em estado tão puro no Jardim Zen, que um riacho podia correr sem água, uma rocha gerar uma árvore e uma simples vela suscitar o Despertar.

Para que o sopro vital se esvaísse do corpo, bastava colocar uma agulha debaixo do umbigo, também chamado de “porta fechada”, de acordo com os princípios da medicina taoista, que dariam origem à acupuntura.

A sessão teve lugar durante um sermão silencioso, pois a energia zen estava no seu mais alto grau de fluidez e refinamento. O samurai foi colocado diante de uma vela. Assim, caso a operação obtivesse êxito, a chama se apagaria sob o efeito do sopro.

O sermão mal tinha iniciado quando uma borboleta de alas diáfanas apareceu, voando perto da chama fragíl. E, de repente, o inseto sumiu, dissolvendo-se na noite. O mestre sabia que essas leves batidas de asas podiam, centenas de léguas mais longe, desencadear um tufão, chamado camicaze no Japão. E falou : “O universo é um Jardim Zen, onde a menor brisa é uma tempestade.”

Os monges seguiam zombando o samurai, apesar da armadura que tinha vestido nessa ocasião. Sentado diante da vela, o guerreiro suportava sem pestanejar os gracejos, incluindo os do Mestre Zen.

Este último enxergou uma flor que, milagrosamente, brotara no galho da árvore crescendo na rocha. Colheu-a e agitou suas pétalas diáfanas, causando um sopro, que fazia vacilar a chama. E disse : “A borboleta é uma flor sonhando que está voando, e a chama a acordou.”

Foi neste momento que o samurai teve, num relâmpago, a intuição que era um eunuco sonhando que era um poderoso guerreiro, e que precisava despertar. Empurrou para longe o médico, que se aproximava com sua agulha e logo em seguida, tirou sua espada. Com um sorriso de êxtase estampado no rosto, cravou-a em sua própria barriga na altura da “porta fechada”. A chama da vela vacilou uma última vez e quase no mesmo instante, um camicaze aniquilou a frota inimiga.

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Stéphane Chao nasceu em La Rochelle (França), em 1974. Foi diretor do Escritório do Livro na Embaixada da França no Brasil entre 1999 e 2003. Organizou a Antologia pan-americana e o Atlas Universal do Conto, com Alberto Mussa, ambos publicados pela Record. Tem contos publicados no Brasil e na França. Vive em Paraty (RJ)

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Para ler o texto em francês, clique aqui.

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