* Por Åsne Seierstad *

Enquanto vivia naquela Leningrado desmoronada, e depois em Moscou, comecei a estudar ciência política e muita coisa aconteceu. Os fatos se modificavam dia após dia, e conheci muitas pessoas fascinantes. Meus amigos me diziam: ‘Você deveria escrever sobre essas pessoas’. E foi o que fiz. Comecei a enviar algumas matérias para jornais noruegueses e, aos 23 anos, ofereceram-me um trabalho como correspondente em Moscou para um jornal da Noruega.

Mas uma coisa importante, imagino, em minha própria carreira jornalística, é que comecei sem quaisquer ambições de me tornar uma grande jornalista. Nunca tive um chefão me dizendo o que fazer, nem tinha condições de montar uma agência de notícias. E isso foi há apenas 12 anos. Essa era uma época antes da internet, se é que vocês conseguem imaginar. A gente não podia simplesmente clicar na rede e descobrir o que estava acontecendo à nossa volta; a gente tinha realmente de ir a campo e procurar as histórias.

Assim, foi exatamente o que fiz, andando pela Rússia, vivendo, indo à estação de trem, aos sem-teto, até aquela velha indústria agrícola soviética em frangalhos, e simplesmente tentando, realmente tentando descobrir coisas sobre o país. E quando fazia um ano que eu estava por lá, estourou uma guerra. As tropas russas invadiram a República da Chechênia, no interior do Estado Russo, em 1994. E eu tinha de cobrir isso de Moscou: uma guerra num lugar sobre o qual eu mal tinha ouvido falar, cujo nome eu mal conseguia soletrar — Chechênia era muito difícil. E, passados alguns meses, me dei conta de que devia ir até lá e acompanhar tudo de perto.

Naquela idade, quem de nós iria para uma guerra? Pelo menos eu nunca havia pensado em ir para uma, pois, não sei em relação aos brasileiros — vocês parecem mais acostumados à violência e conflitos, imagino, é o que ouço falar —, mas, na Noruega, supostamente o país mais pacífico do planeta, a guerra é sempre em outro lugar, não é onde a gente está, não é onde a gente deve estar, é lá longe, é muito além, é num lugar diferente. Eu não tinha qualquer experiência nessa questão e ficava imaginando também, quando tomei a decisão, ‘como se vai para a guerra?’. Não há aviões, as estradas estão bloqueadas, as fronteiras estão fechadas. Como a gente faz para chegar até lá?

Foi aí que me dei conta de que alguém tinha de ir; os militares tinham de ir, pois estavam enfrentando uma guerra, afinal. E, de fato, fui até o Ministério da Defesa, em Moscou, e perguntei se poderia pegar uma carona em um avião que estivesse indo para a guerra. E eu pude, porque eles não eram muito democráticos, digo, burocráticos, naquela época. E consegui chegar lá. De repente, estava sozinha em um campo de pouso. Os soldados tomaram seu caminho rumo ao campo de batalha, e fui abandonada à minha própria sorte, armada apenas de um capacete que ganhei de presente do exército russo. Sem conhecer o lugar, sem ter um mapa; aquilo era simplesmente um projeto maluco. Jamais havia estado naquele lugar, jamais. Estava ali por conta própria e, até agora, não consigo me lembrar como fui parar no centro da cidade. Mas, de alguma maneira, consegui chegar, provavelmente de carona de novo. Perguntei por um lugar onde ficar, mas não havia hotéis, não havia albergues. E estava escurecendo.

Tudo estava totalmente bombardeado e em ruínas. Então, o que fazer? Foi quando me aproximei de uma menina — sempre que estiverem em perigo, peçam ajuda a meninas, elas são sempre gentis — e ela me disse: ‘Sim, venha e fique com a gente’. Ela me levou para a sua casa, e notei que era uma casa só de mulheres. No início, elas tinham muito medo de falar, pois não sabiam quem eu era, afinal, com aquele enorme capacete do exército russo. Mas, depois de alguns instantes, deixei o capacete de lado, e elas começaram a falar. O pai da família havia morrido durante os bombardeios, a mãe estava vivendo ali com as filhas mais velhas e os netos, e todos os maridos estavam fora, lutando contra os russos nas montanhas.

Eu tinha muito medo de sair daquela casa e, assim, o que aconteceu foi que acabei ficando lá por uns tempos. E foi então que vieram as histórias. Lembro-me de uma mulher, ou de uma menina — na verdade, ela tinha 17 anos — me dizendo já ter entrado em seu décimo mês de gravidez. Simplesmente contou-me que ‘durante essa guerra reprimi todas as emoções, tenho tido tanto medo que agora o bebê não quer nascer’. Uma noite, houve um grito, e um bebezinho nasceu de um pai ausente, nas montanhas em algum lugar, sem saber que havia tido seu primeiro filho naquele momento, e de uma mãe que não sabia se o pai ainda estava vivo. Esse nascimento tornou-se minha primeira história de guerra que, mais tarde, enviei para o meu jornal.

Estou contando este fato para vocês simplesmente porque, às vezes, as pessoas me perguntam ‘qual é o seu estilo particular?’ ou ‘por que você escreve como escreve?’, e me dei conta de que esse é o começo das minhas reportagens de guerra. Ou seja, por estar com muito medo de sair, fiquei na casa daquelas mulheres e consegui esse tipo de história. E isso me leva a um ponto que é, provavelmente, a qualidade da qual temos tão pouco no jornalismo e, infelizmente, na literatura, ou na literatura não-ficcional, que é o tempo. Nós nos estressamos e fazemos tudo tão rapidamente, que deixamos escapar os principais momentos comoventes dos seres humanos que podem, de fato, nos unir e não nos afastar.

É provável que tenha cometido um erro na minha carreira literária ao ter ido parar na televisão. Após essa guerra, consegui um trabalho em uma televisão norueguesa e fiquei sem escrever durante anos. Nesse período, minha vida tornou-se cada vez mais realidade, correria, estresse, prazos e cada vez menos literatura. Pois, vocês sabem, na televisão tudo anda rápido e os prazos são rigorosos; simplesmente não se pode perder o prazo do jornal das sete ou das nove. Após um ano lá, fui enviada para minha segunda guerra, a guerra do Kosovo. Essa guerra marcou também o final da minha carreira televisiva, e vou contar-lhes a razão.

Numa guerra as pessoas desaparecem por inúmeras razões — elas são mortas, ou raptadas, ou levadas como reféns ou simplesmente por vingança. E muitos kosovares foram raptados, ou, como dizer, foram levados pelos sérvios e mortos e, posteriormente, encontrados em fossos e tudo o mais. Acompanhei — isso foi após a guerra — um grupo de investigadores, de pessoas que procuravam desaparecidos. Nós estávamos entrevistando um pai, que nos contou a história de seu filho, que havia sido levado pelos soldados sérvios. Eu estava em cima da hora, como sempre estamos nos noticiários, e ia fazer uma matéria de um minuto e meio sobre esse homem e seu filho e sobre alguma outra coisa também.

Era uma entrevista com tradução albanesa e tudo, e eu estava estressada e cansada. E esse homem talvez fosse alguém muito literato, porque ele não conseguia ir diretamente ao ponto; ele tinha de dizer ‘quando parei diante da janela o sol estava lá e a casinha, havia um gato… e então… acho que vi o carro e então meu filho… e vi meu filho acenando’, e aquilo parecia dar voltas e mais voltas. Vi que não teria tempo suficiente para isso e pedi a ele: ‘Bem, sabe como é, o senhor poderia contar tudo isso mais rápido?’. Ele tentava ser mais rápido, mas ainda estava enrolado, até que tentei explicar-lhe sobre as limitações da televisão: ‘Minha matéria vai ser de apenas um minuto e meio, e a sua parte talvez seja de uns 30 segundos; então, o senhor poderia, por favor, contar-me sua história em 30 segundos?’. Nesse momento, ele olhou para mim e disse: ‘Passei pela pior experiência que um ser humano pode ter que é perder um filho, e isso é algo que não desejo nem para um inimigo. Isso é algo que não desejo para você. E você quer que eu te conte tudo em 30 segundos?’.

Para mim, aquilo soou como a hora da verdade. Conseguimos produzir a matéria, mas também saí da televisão, porque percebi que estava ficando igual a eles. Não poderia simplesmente culpar o estresse e a pressa pela maneira desumana como os repórteres tratam as pessoas em uma guerra. Eu estava me tornando um deles, estava me transformando em algo que não queria ser. Após esses anos na televisão, senti uma profunda necessidade de ter longos pensamentos, como a gente tem nos livros, onde há sentenças de muitas linhas, bem ao contrário da televisão, que vai nos dar sempre apenas fragmentos e talvez nuanças e sombras. Acredito que, para compreender um conflito, onde quer que aconteça, precisamos compreender as pessoas. Isso pode ser melhor realizado quando estabelecemos relações mais duradouras com elas e, de certa forma, acredito também que isso possa ser melhor realizado por meio dos livros.

Ao retornar da guerra do Kosovo, comecei a escrever meu primeiro livro. E como eu havia feito a cobertura da guerra a partir do lado das vítimas, a partir dos kosovares, eu pensava: ‘Quem está do outro lado, quem é o inimigo, ou quem são os caras maus aqui?’. E, naquele momento, eram os sérvios. O povo sérvio que ficou com o rótulo de inimigo ou algo assim, praticamente como os rejeitados da Europa. Eles estavam sob sanções; não podiam viajar para fora de seu país como uma forma de punição pelo que Milosevic havia causado ao restante da região.”

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Åsne Seierstad é jornalista e escritora norueguesa. É autora do best-seller O livreiro de Cabul

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Trecho de conferência proferida no projeto Fronteiras do Pensamento, incluído no livro “21 ideias do Fronteiras do Pensamento para compreender o mundo atual”, organizado por Fernando Schüler e Eduardo Wolf (Arquipélago Editorial, 238 págs.)

 

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