Rue d’Aligre, Paris, outono, 1978

Leio num caderno o que ouvi do Nortista na Oficina Básica de Música da UNB em agosto de 1970:

Prometeu só foi encenada na estreia, Martim. Ângela bagunçou a reunião de Damiano com os atores no bar de Taguatinga. Ela estava enlouquecida de tanto fumo, cerveja e inveja, mas deu o recado do pai dela: nossa peça ia ser proibida. O senador sacou o texto e disse isso pra Ângela no fim da apresentação. Lázaro e Dinah se recusaram a encenar com o texto censurado, Vana e Fabius discutiram com eles. No meio das acusações, Damiano murchou.”

Virei várias páginas em branco do caderno até ver os traços a lápis dos rostos de Dinah e Lina. Quando esses desenhos foram feitos? Em outubro de 1970, no Instituto Central de Artes? Na beira do Paranoá, de noitinha? Dinah nunca falou do fracasso de Prometeu nem da discussão com Damiano no bar em Taguatinga. Depois dos nossos encontros amorosos, e quase sempre inesperados, ela se dedicava à militância, ao teatro e aos estudos. Na folha branca tentei expressar nos rostos de Lina e Dinah os olhos que se esquivavam de mim. Só retomei as anotações do diário numa noite de novembro, após uma tarde de tumulto, quando o Nortista entrou no ateliê de Desenho de Observação e disse que um professor fora desmascarado e os estudantes protestavam na reitoria.

Saímos do ateliê e vimos o Geólogo, de pé numa mesinha; segurava um megafone e dizia que o professor Romero Blanco tinha sido um falangista durante a Guerra Civil Espanhola.

“Esse falangista bagunçou o lançamento do primeiro número da Tribo”, disse o Nortista. “Se Fabius não fosse tão covarde, a gente estaria filmando tudo isso.”

Dinah e Lázaro estavam juntos, ela olhava a cabeça do orador, Lázaro mirava um lugar bem mais alto, como se estivesse rezando.

“Romero Blanco não é antropólogo nem cientista social”, continuou o Geólogo. “Esse charlatão é um dos contatos entre o vice-reitor e a repressão. Enviava ao Dops e ao comando da Polícia Militar do DF listas com nomes de professores, estudantes e funcionários.”

“Romero Blanco de merda”, disse o Nortista. “Rasgou a Tribo e me ameaçou. Fabius queria que eu ficasse caladinho, escutando as ameaças do falangista. Dinah está ali na frente.”

Andei devagar ao encontro dela, a voz do orador pedia aos manifestantes que deixassem o dedo-duro sair da reitoria: qualquer provocação seria pior.

O Geólogo pulou para o chão, ficou agachado e desapareceu; quando Lázaro ia subir na mesinha para discursar, seis homens armados saíram de uma sala da reitoria e rodearam um moreno bigodudo, cabelos grisalhos, uma pasta marrom presa ao sovaco esquerdo. Os seguranças o conduziram a um Aero-Willys preto, Romero Blanco reagia às vaias com o braço direito esticado para o alto, um ovo espocou na testa dele, a gosma amarela escorreu em seu rosto; dois seguranças entraram com o falso antropólogo no Aero‐Willys, os outros esperaram o carro partir e voltaram ao edifício da reitoria. A primeira bomba de gás caiu perto do corpo de Lázaro, a fumaça me cegou por um instante, consegui tocar as costas de Dinah, mas fui empurrado e caí; quando levantei, os estudantes se dispersavam aos tropeções na fumaceira de outras bombas de gás, não vi Dinah nem o Nortista, corri num ritmo tão veloz que mal sentia as pernas. Não sei quanto tempo corri nem onde estava deitado. Parecia um lugar fora do campus, os edifícios espaçados por uma área de barro com tufos de grama não eram blocos da Asa Norte. Agentes à paisana estavam infiltrados no protesto, ondas de ódio e pavor por toda parte… Dinah e o Nortista tinham escapado? Escutei um assobio e ergui um pouco a cabeça: a figura esguia de Damiano Acante saía de um bloco e se aproximava, o sol ofuscava o rosto dele, os passos curtos se desviaram dos tufos de grama e pararam perto de mim, sombreando minha cabeça. Quando ficou de cócoras, parou de assobiar. Perguntei que lugar era esse.

“Colina, morada dos professores”, disse Damiano Acante. “Não é o melhor refúgio para um anti-herói. Vamos subir, teu rosto está sangrando.”

*

A noite da espera, de Milton Hatoum (Companhia das Letras, 240 págs.)

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