* Por Eliana Alves Cruz *

Não há como escrever algo neste outubro de 2018, no Brasil, que não fale sobre o silêncio. Tudo clama por ele e nos leva a ele, mas não é uma mudez sadia. Não é o vazio de palavras que enche o peito e a alma de coisas belas e recordações da paz de algum passado bom. É um silêncio de bocas atadas, presascom mordaças invisíveis impostas pelo medo. Dei-me conta disto exatamente esta manhã, quando me sentei para escrever como diriam os antigos – “estas mal traçadas linhas” – e minha filha de apenas onze anos me advertiu: “Mamãe, cuidado”.

A que ponto de loucura chegou um país em que o ato de escrever observado de longe por uma criança a motiva a pedir cautela a pessoa que ela tanto ama e que, no caso, é a sua mãe? O diagnóstico é de que o estágio da doença autoritária é avançado. Um cancro antigo que se camufla e sempre retorna com pretensões letais. No entanto, para afastar a menina do silêncio do chumbo que pesa sobre as vozes dissonantes da toada majoritária, não conheço outro remédio que não seja ela mesma: a palavra.    Sentei-me com minha filha com uma obra que li recentemente e que, aparentemente, não é para crianças: O homem azul do deserto, de Cidinha da Silva.

Acredito que tudo é para crianças desde que saibamos extrair os pontos que falam a elas. Para mim, o livro de Cidinha contém “crônicas fabuladas”. São histórias reais, mas que misturam a boniteza e a riqueza de imaginação próprias dos contos. São pérolas do nosso cotidiano de lutas seculares, mas que ela traduz em passagens por vezes repletas de poesia, humor, amor, resistência ou tudo isso e algo mais reunido. Entre os 52 textos achei mais que apropriado para o momento Iku e o menino que furtava livros, que faz um paralelo entre a garota Liesel Meminger, a personagem principal de A menina que roubava livros, de Markus Zusak, em que a morte é a narradora, e Alex Santana, menino preso em Salvador por furtar três livros na livraria de um shopping. A sacada genial vem da advogada para o suposto julgamento do delito do menino brasileiro: Iku, a entidade iorubana que personifica a morte.

O livro de Zusakconta como Leisel – filha de mãe comunista e perseguida pelo Nazismo – furtava livros e por escapar seguidamente da morte, acaba conquistando a simpatia da mórbida personagem. O nazismo, este regime que incinerou literalmente judeus, homossexuais, negros, ciganos e tudo o que considerasse “fora dos padrões”, nunca esteve tão perto de nós. Sentimos seu cheiro de sangue em cada esquina neste outubro de 2018, no Brasil dos 54% de pretos e pardos perseguidos por um racismo renitente, no Brasil que tem o triste recorde de nação que mais mata a população LGBTQI em todo o planeta.

Na crônica-conto de Cidinha, Iku fica pesarosa e toma a defesa de Alex ao reparar “o desejo de voar do menino”. Minha filha indaga: “Isso foi verdade? Isso dele ter sido preso porque roubou três livros?”. Constrangida afirmo que sim, pois ele não teve dinheiro para a fiança e foi parar no presídio da Mata Escura. No texto de Cidinha o grifo para um detalhe da notícia que contou o caso de Alex, que destacou o gênero dos livros furtados: ficção. Como surdo é aquele que ouve apenas o que se diz, lemos no que não está escrito que se fossem livros didáticos o “crime” seria menos condenável ou podemos ainda deduzir que não se aprende com literatura. No lindo ‘O homem azul do deserto’ de Cidinha, Iku, diante de tamanho obscurantismo, faz uma defesa ardente do menino. Minha filha conclui: A morte sabe das coisas!”

Sim, a morte sabe de todas as mentiras que contamos e que entre estas, as relatadas nos livros são as únicas que não exigem a sua constante presença para levar para o mundo da invisibilidade e do esquecimento os nossos semelhantes. A morte, para “espezinhar” a vida, a sua opositora que insiste em enviar para os seus braços a nós, os mesmos párias dos tempos da garota que furtava livros há mais de sete décadas, teima em nos manter de pé. Por isso estamos aqui, no trabalho constante de romper o silêncio que o chumbo dos donos da verdade tenta nos impor.

Minha filha, mais animada, pergunta: “Então vamos viver?” Respondo: “Sim, querida. Sem nenhuma sombra de dúvida”.

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Eliana Alves Cruz, carioca, escritora e jornalista (colabora com o site The Intercept Brasil), pós-graduada em comunicação empresarial. Eleita conselheira municipal de cultura do Rio de Janeiro na linha de literatura. Vencedora do concurso de romances da Fundação Cultural Palmares/MINC 2015, com a história baseada na trajetória de sua família, desde a metade do século 19, na África, até nossos dias. Autora na coletânea Cadernos Negros 39 (poesias) e 40 (contos), do Quilombhoje literatura. Também está no livro Perdidas, histórias para crianças que não tem vez, da Imã Editorial. Acaba de lançar seu segundo romance: O crime do cais do Valongo (Editora Malê).

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