* Por Rafael Gallo *

Abril despedaçado é um desses livros cuja história é conhecida por muito mais pessoas do que aquelas que realmente o leram. Grande parte disso se deve, claro, ao filme homônimo, de 2001, do diretor Walter Salles, que transpôs a trama para o sertão nordestino do Brasil. No livro, o câmbio de assassinatos vingativos se passa no norte da Albânia, regido pelo código do Kanun. Tal conjunto de regras morais e políticas de fato existe e vem sendo seguido, em diferentes graus e maneiras, por séculos.

Como toda violência institucionalizada, as vendetas tratadas em Abril despedaçado se alicerçam no tripé da estupidez, dos ganhos dos mais poderosos e da manipulação ideológica. A manipulação é um problema de raiz, que, nesse caso, vem da transmissão e manutenção do próprio Kanun (cuja etimologia remete a “cânone”, do grego) e da obediência irrestrita a seus preceitos. Os ganhos dos mais poderosos, no livro, é explicitado pelo fato de que há um tributo a ser pago, em dinheiro, por cada morte. Quando um gjaks– aquele que matou o membro rival – realiza sua parte do código, é obrigado a pagar certa quantia em dinheiro à Orosh, uma instituição oficial.

A estupidez – que alimenta e é alimentada pelos outros dois fatores – fica bem representada em uma cena na qual, depois de anos da troca de vinganças e suas muitas mortes, abre-se uma oportunidade para trégua entre as duas famílias centrais na história. Líderes representativos da comunidade se reúnem com os envolvidos para negociar tal acordo. Todos presentes demonstram concordância com a trégua – já que as famílias estão rumando para a ruína e restam poucos homens sobreviventes, além dos já muito velhos – mas, de repente, o tio idoso de uma das famílias, que nunca se manifestava e era um zero à esquerda, simplesmente grita “não”, em meio ao acerto, e a possibilidade de cessar as mortes é abortada. Seguem-se os assassinatos, a ruína que escolhem para si.

É claro que é impossível não traçar muitos paralelos entre essa história trágica – de um livro e de um país – e nossa própria pátria. Foram poucas as linhas que li em Abril despedaçado, e menos ainda as que escrevi aqui, as quais não tinha na cabeça o tempo todo: eis o Brasil, sua falência, sua estupidez, sua violência trágica.

Trecho:

“O que você tem?”, perguntou ele.

“Nada”, respondeu ela, tranquilamente. “Estou com um pouco de medo, só isso”.

 “É mesmo?” Ele sorriu. “Como isso é possível?”

“Não sei”.

Bessian balançou ligeiramente a cabeça, como se o seu sorriso fosse a chama de um fósforo diante do rosto e ele tentasse apagá-lo.

“Então, escreva o que estou dizendo, Diana. Embora estejamos na região da morte, você está segura como nunca esteve em sua vida, a salvo não só das desgraças, mas também da mais ínfima ofensa. Nenhum casal de soberanos teve jamais uma guarda mais devotada, mais disposta a sacrificar seu presente e seu futuro, do que a que teremos hoje. Isso não a tranquiliza?”

“Não é disso que sinto medo”, disse Diana. “É de outra coisa, nem eu mesma saberia explicar. Há pouco você falava de divindades, do destino, da fatalidade. São palavras bonitas mas que ao mesmo tempo arrepiam. Eu não quero provocar a desgraça de ninguém”. 

*

Rafael Gallo nasceu em São Paulo. É autor de Rebentar (Ed. Record, 2015), romance vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura, e Réveillon e outros dias (ED. Record, 2012), coletânea de contos ganhadora do Prêmio Sesc de Literatura. Ambos os livros foram finalistas do Prêmio Jabuti. Tem ainda contos publicados em diversas revistas e antologias, como a Desassossego (Ed. Mombak, 2014) e a Machado de Assis Magazine (Ed. Biblioteca Nacional, 2012), que publicou tradução do conto Réveillon para o espanhol.

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