Por Selene Alge *

Há pouco tempo, participei de um bate-­‐papo referente a uma mostra de arte que contemplava jovens artistas, em uma cidade do interior de São Paulo. Foi um encontro bastante valioso em diversos aspectos, mas o que mais me chamou atenção naquela manhã foi a artista cujos trabalhos selecionados eram séries de colagens digitais a partir de imagens retiradas da internet.

A lucidez e espontaneidade das palavras daquela garota de 16 anos me impressionou. Ela lançou questões sobre a romantização da violência e sobre como somos pouco afetados por imagens sangrentas quando estas estão distantes de nós, quando aparecem em noticiários, filmes ou mesmo acidentes de trânsito em que passamos perto, curiosos, diminuindo a velocidade, e seguindo nosso caminho instantes depois, com a tranquilidade rapidamente retomada.

Lembrei-­‐me de quando eu tinha a idade dela e tudo o que eu queria era que a escola terminasse logo para que eu pudesse entrar na faculdade de Arte e ficar desenhando o dia inteiro. Nem de longe eu pensava em problematizar questões na minha prática artística. Sempre fui indignada com as desgraças do mundo, mas ainda achava, intuitivamente, que a arte estava em outro lugar, sagrado, sendo um universo que tem o poder de levar para longe nossas angústias e sofrimentos.

Não é novidade o misto de solidariedade, repulsa, tristeza, aflição e alívio que cenas de violência comumente nos proporciona. Nos sentimos mal com o sofrimento alheio, ao mesmo tempo ficamos aliviados por aquilo ser ficção, ou por não estar acontecendo com nós mesmos – está longe, é problema do outro. Entende-­‐se por outro desde um personagem fictício a alguém de carne e osso,  que não está próximo a nós, não faz parte de nosso círculo afetivo. Há um prazer que a distância da ficção (ou da afetividade) nos proporciona, e esse prazer tem um custo. Para quem se sente violentado, seja por opressões sociais sistemáticas, seja por ter vivido situações reais de violência de qualquer ordem, há como encarar a ficção como algo distante?

Os tempos mudaram, o acesso a informação ganhou outro status e as redes sociais possibilitam todo tipo de discussão. Entre essas discussões, a questão da violência contra a mulher tem se expandido, pautas feministas circulam por diversos meios, pulsantes. E é nesse contexto, nesse tempo atual em que contestar e problematizar se mostra urgente e necessário, que Quentin Tarantino nos apresenta “Os oito odiados”.

Na trama, todos os personagens cometeram um assassinato ou tinham essa pretensão (talvez com exceção do cocheiro), e temos que acreditar na palavra do caçador de recompensas de que Daisy Domergue, a única mulher dentre os oito que nomeiam o filme, é uma assassina atroz. Mesmo sendo “odiável” por razões que não nos são muito claras, ela é socada, empurrada, acotovelada, cuspida, vomitada e enforcada no decorrer das longas três horas de filme. Todos são personagens detestáveis, que destilam sem nenhum pudor misoginia, racismo e toda sorte de preconceitos, porém quem está acorrentada sem condições de se defender e sofre abuso de poder durante todo o tempo é a mulher, “diabólica”, “traiçoeira” – e “vadia”, como não podia deixar de ser.

Se a intenção de Tarantino era fazer algum tipo de denúncia a uma sociedade doente, será que o melhor jeito de trabalha-­‐la é estimulando seu público a rir de vômito sangrento em cima dos outros, rir a cada soco que a mulher leva, rir cada vez que um homem mostra o seu pior, rir dessa violência pastelão já desgastada? Justificar-­‐se com referências cinematográficas do gênero western ou com seu vasto repertório incontestável e distanciar-­‐se do problema a favor do grande cinema é uma saída fácil, como se ele não tivesse nada a ver com o que denuncia, não fizesse parte de uma opressão sistêmica também. Sendo homem, americano, branco e privilegiado, a ficção não causa incômodo a ele. “Tarantino está longe de ser misógino ou racista”, dizem por aí, mas isso não isenta o filme de o ser.

Por outro lado, se a intenção for ironia e violência simplesmente, e o caráter de denúncia for apenas pretexto para suas experimentações formais, sem considerar as vivências e as possibilidades de identificação de quem assiste do outro lado, a irresponsabilidade dá lugar à pura cretinice.

Todas as cenas que um diretor escolhe manter estão lá por alguma razão.

Há de se perguntar quais são essas razões, o que se quer de fato com isso. A última cena de “Os oito odiados” não tem como ser mais sádica. Os dois homens que sobreviveram até então, inimigos por excelência e que passaram toda a narrativa trocando insultos, juntam-­‐se para enforcar a “vadia”. De repente tornam-­‐se brothers e compartilham o prazer que é ver o rosto ensanguentado de Daisy perder a vida conforme a corda aperta. Qualquer reminiscência com procedimentos da realidade não é delírio nem exagero.

A arte não está acima de tudo, não é um lugar intocável em que as maiores atrocidades são permitidas em favor da fruição. As referências também não estão congeladas, elas podem ser ressignificadas o tempo todo. Não é “só um filme” quando o que vemos ali tem muito do que vivemos, sabemos e carregamos na “vida real”.

Sangue jorrando na neve só é bonito porque não é o seu. Miolos estourados no meio da fuça só tem graça porque não é na sua.

*

Selene Alge é artista plástica e ilustradora

Tags: