* Por Paulliny Gualberto Tort *

Não teve jeito. Não foram suficientes os manifestos, as declarações, as marchas, as hashtags, os argumentos, as palavras de ordem: o povo brasileiro escolheu Jair Bolsonaro presidente da República das Bananas. Com mais de 57 milhões de votos, o candidato que diz ser favorável à tortura é eleito governante do maior país da América Latina. Ao menos, acabou a falácia de que o brasileiro é um povo pacífico; o que queremos mesmo é resolver os problemas à bala. Ou à faca, como aconteceu ao capoeirista Mestre Moa do Katendê, assassinado em um barzinho de Salvador por declarar voto em candidato da esquerda. Em uma nação onde a maioria das pessoas não é educada para a sensibilidade humana, mas, quando muito, para a eficiência profissional, comportar-se como bicho de rinha é perfeitamente aceitável. Decerto que ainda veremos muitos arreganharem os dentes contra a ameaça comunista que nunca existiu e tantos outros que aproveitarão do ensejo para botar na rua os piores sentimentos em relação à diversidade humana. Sejamos, porém, argutos. E aqui falo sobretudo aos escritores. Como versa a terceira lei de Newton, para toda ação existirá uma reação, de mesmo valor, mas com sentido oposto.

Nos últimos dias, diferentes segmentos sociais se mobilizaram para responder à onda ultraconservadora que avança sobre o Brasil. Ao menos dois manifestos foram divulgados e assinados por escritores, editores e outros protagonistas do meio literário: o “Manifesto do Livro”, em apoio à candidatura de Fernando Haddad, do PT, e o “Manifesto da Literatura pela Democracia”, encabeçado por Julián Fuks. No contexto da corrida para o segundo turno, estes manifestos – especialmente o segundo deles, pelo caráter independente e apartidário – tiveram sua importância. Mas não podemos ignorar o fato de que estivemos a falar para nós mesmos, isto é, para aqueles que compartilham de nossos valores. Não esperemos que conceitos como “liberdade” e “empatia” comovam os tiranos e seus asseclas. Um manifesto tem significação simbólica, tem valor histórico, mas não demove as pessoas de decisões tomadas com base nessa máxima um tanto histérica de “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. O que então, nós, escritores, podemos fazer para além de expor nossos princípios, que são e serão sempre humanistas?

Ora, façamos o que sabemos e podemos: escrever. A literatura dispõe de ferramentas muito poderosas para gerar oposição ao clima de intolerância que se instaurou no país. Como bem resumiu Julián Fuks em seu manifesto, a literatura “tem como ideal e como fim a aproximação ao outro, a compreensão de suas aflições, de seus suplícios, o encontro entre diferentes”. Portanto ler um texto literário é sempre, em alguma medida, um exercício de alteridade. Quem lê sabe que crescemos quando nos identificamos com o que há de humano naquela personagem tão diferente de nós, quando conseguimos nos envolver com ela, com suas motivações. Algo semelhante se dá quando um poema ou uma crônica nos apresenta perspectivas que nos eram até então inéditas. E há que se considerar também uma espécie de função social da literatura, que é justamente responder aos desafios que nos cercam, transformando-se em resistência.

Sempre defendi, e continuo defendendo, que a literatura não tem compromisso com nada além de si mesma. A criação literária, como toda forma artística, é uma gata indócil e seria desastroso tentar domesticá-la. É evidente também que a literatura não dá respostas diretas aos fatos que a circunscrevem, nem é esse o seu papel. Mas a forma como elabora e propõe as questões de seu tempo pode tocar o leitor, fazê-lo pensar, o que não é pouco. Com isso, não defendo a formulação de uma literatura dita “panfletária”, empobrecida pela defesa explícita de suas teses, muito ao contrário. Mas que a literatura brasileira reaja à penúria desses dias com a inventividade, o olhar atento e a riqueza formal que lhe são características. Sei que muitos sentem a necessidade de tornar literário o que está se passando conosco enquanto sociedade, às vezes por meio de um viés histórico. Outros têm sede de explorar nossas subjetividades, nossas questões existenciais em meio à balbúrdia geral. A meu ver, ambos os movimentos são necessários e já vislumbro uma safra de livros inquietantes vindo por aí, desses que no passado teriam quiçá alimentado fogueiras. Portanto, a despeito de toda gritaria contra a liberdade e a cultura, e justamente em virtude desta gritaria, escrevamos.

E escrevamos muito, sobre os assuntos que quisermos. Façamos com que esses livros circulem e cheguem ao maior número de pessoas dentro de nossas possibilidades. Quando livros estão disponíveis, mais dia, menos dia, nasce um leitor. E outro. E mais um. Assim, em um futuro não tão distante, poderemos ser a pátria leitora que tanto almejamos e que certamente terá mais apreço pelos valores democráticos. Poderemos ser um povo que se entende como conjunto e que é capaz de compreender, emocionado, as palavras de John Donne: “Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma partícula do continente, uma parte da terra; se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria; a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”.

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Paulliny Gualberto Tort é produtora e apresentadora do programa Marca Página, da Rádio Nacional, autora do romance Allegro ma non troppo e idealizadora do Festival Internacional de Literatura e Direitos Humanos, em Brasília

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Na foto ilustrativa, Graciliano Ramos

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