“Não sei bem se escolhi meu tema ou se fui escolhido por ele. Muito antes de arriscar a primeira linha já sabia que um dia teria que escrever este livro, já ouvia os sussurros da história, já compreendia que tarefa era a minha. Não sei por que demorei tanto tempo para cumpri-la. Por que precisei que meu irmão o pedisse, que uma instituição me isolasse em Paris com essa incumbência, que a Fê [Fernanda Sucupira] me incentivasse a cada dia com tanta ênfase. ‘Escreve’, ela insistiu tantas vezes. Isso não é um conto, é um romance, ela instruiu quando eu quis me deter. Aos poucos, fui me apoderando das dúvidas, fui domesticando as relutâncias, e pude enfim me livrar da resistência. Agora está aí, é de quem queira.”

O texto acima foi escrito por Julián Fuks e trata do seu mais novo romance, A resistência, que aborda a relação do autor com seu irmão adotado. Leia um capítulo abaixo:

3

Ele é adotado, foi o que eu disse alguma vez a uma prima que teimava em ressaltar como éramos diferentes, ele e eu, seus cabelos mais escuros e encaracolados, seus olhos tão mais claros. Na minha declaração não havia maldade ou despeito, eu acho, eu devia ter uns cinco anos de idade – mas, se agora me sinto impelido a me defender, talvez de fato estivesse acometido por alguma crueldade inocente, que até hoje trato de velar. Estávamos num carro dirigido pelo meu pai, e minha mãe só podia estar ausente porque meu irmão ocupava o banco da frente, não sei se acompanhando a conversa ou perdido em pensamentos insondáveis. Fez-se um silêncio imediato. Posso ter levado um cutucão discreto da minha irmã, que imagino sentada ao meu lado, ou a pontada foi apenas o incômodo que senti ao perceber que havia errado, incômodo que tantas vezes senti sem que ninguém me acotovelasse. Tão contundente foi aquele silêncio que dele me lembro até hoje, entre tantos silêncios pouco memoráveis.

Não estarei tentando me absolver do equívoco ao dizer que naquela época as orientações que recebíamos eram ambíguas e vagas. Desde sempre meu irmão soubera que havia sido adotado, era o que meus pais diziam, e esse desde sempre me deixava intrigado, ou me intriga agora: como dizer algo dessa ordem a uma criança que mal domina as palavras mais simples, com que distância ou frialdade ditar, mamãe, papai, nenê, adoção? Como transmitir a importância daquele fato, com a seriedade que o assunto exige, sem lhe atribuir um peso desnecessário, sem transformá-lo num fardo que o menino jamais poderia carregar? Era Winnicott quem ditava os passos – fizemos quase tudo o que indicava a teoria winnicottiana, eu ouviria anos mais tarde, sem compreender o termo ao certo mas notando o tom de lamento, a voz desolada. Que ele soubesse, que nós soubéssemos, que soubessem todos os habitantes da casa, era algo que se sabia fundamental. E, no entanto, de alguma maneira se instaurou a reversão desse processo, em algum momento o que era palavra se tornou indizível, calou-se a verdade como se assim ela se desfizesse. Não creio impreciso dizer que foi meu irmão quem impôs a todos o silêncio que lhe era mais confortável, e nós simplesmente aceitamos, tão gentis, tão covardes.

Na minha lembrança os olhos do meu irmão estavam lacrimosos, mas desconfio que essa seja uma nuance inventada, acrescida nas primeiras vezes que rememorei o episódio, turvado já por algum remorso. Ele estava sentado no banco da frente. Se chorava, decerto continha qualquer soluço e escondia as lágrimas com as mãos; ou voltava o rosto para a janela, extraviava a vista em presumíveis pedestres. O caso é que não me olharia, não viraria para trás. Talvez fossem os meus, os olhos lacrimosos.

*

Julián Fuks é escritor

A resistência, de Julián Fuks [Companhia das Letras, 139 págs.]

 

Tags: