Por Ronaldo Cagiano *

Em literatura, o bom-mocismo e o politicamente (ou seria literariamente?) correto não convencem e costumam revelar escritores que trazem à baila sempre o mais do mesmo, convertido às benesses do mercado editorial. A verdadeira literatura, para mim, é aquela que provoca impacto. Que não seja apenas caudatária ou emulação de uma ruptura formal que, muitas vezes redunda no vazio e na falta de conteúdo, mas, primordialmente, a que se firma no que a narrativa tem de visceral e inquietante, tanto no plano temático quanto na construção da própria atmosfera.

É nesse patamar – o da negação das convenções e da própria afetação,  modismos e rotulações de qualquer natureza – que  situo o novo livro de Caco Ishak, Eu, cowboy (Editora Oito e Meio). A meu ver, essa obra anda na contramão de tudo o que vem sendo publicado atualmente no Brasil em termos de ficção e que muitas vezes já chega como pacote sacralizado por certa crítica de encomenda, recebendo o incenso do consenso, mas que, no frigir dos ovos, vamos perceber que não resiste a um escrutínio, a um mergulho mais profundo do leitor.

Eu, cowboy transita num universo em que a ruptura se dá, repito, não pela demolição da forma, mas pela pungência de uma aguda catarse existencial que irrompe vulcânica das vozes de um narrador tão caótico, que coabita com Ishak/Kaddish, o temp(l)o dos perdedores. Bifurcados, atalhados sem seus dilemas íntimos e metafísicos, perdidos no labirinto de seus questionamentos filosóficos e outras inflexões céticas, o que lemos é sobre vida(s) transcorrendo entre o dilaceramento e a frustração. É o romance soco-no-estômago, aquele que não nos deixa sair indiferentes como leitores, muito menos ilesos como criatura.

Não se deve creditar esse rebuliço à linguagem, porque Caco Ishak não é um autor afeito às estripulias verbais, pois sua narrativa não prescinde de qualquer apelo à vanguardice. Mesmo na linearidade com que escreve, o autor insufla uma dicção predominantemente fragmentária naquilo que é percebido como interseção de vários modos de olhar, pensar, discorrer & dialogar sobre o caos e a aridez que nos rodeiam, ponto crucial e de insurgência de um narrador em permanente estado de desassossego.

Ishak dialoga com a modernidade e a tradição, seu texto híbrido está povoado de referenciais estéticas, em que o flerte com ícones da cultura pop e/ou universal gera um discurso que não atenua nossas dúvidas, pelo contrário as atualiza e sugere reflexão crítica sobre o quotidiano e o desmantelamento da civilização arbitrária do consumo e da mass media. Um necessário vômito literário e conceitual contra esse mundo fetichizado pelo deus mercado, quando tudo não passa de verniz e etiqueta coisificando tudo e todos.

Na abertura do romance, o narrador Carlos Kaddish (aqui a referência beatnik não é aleatória, mas afirmação do projeto do autor na configuração de seu estilo marcante e que bebe nas fontes do inconformismo), nos dá as pistas para onde quer levar o leitor, depois que sair nocauteado por essa prosa ao mesmo tempo radical, mas de uma poética contundência, sinalizando que apesar dos escombros e cinzas de uma realidade física, geográfica ou psicológica extremada nos 27 capítulos do livro, ainda podemos sair da escuridão do túnel revelado “na esperança de odiar um pouco menos a humanidade”.

Eu, cowboy é um livro ousado e inovador, porém renovado em seus aspectos, peculiaridades e sutilezas dentro da própria tradição narrativa, chacoalhando o romance burguês ocidental, por isso mantém-se atual, contemporâneo e com ganas de marcar seu espaço nesse cenário de literatura repetitiva e monocórdica que temos lido por aí. Nessa experiência criativa, o autor tratou de dilemas que compõem o caleidoscópico vivencial de qualquer ser e há um flerte com a metalinguagem e a intertextualidade muito fortes, conferindo à obra uma particular polifonia.

Vamos encontrar nessa geografia densa, tensa, caótica e dilacerante um narrador perdido, mas em busca de um sentido ou de uma direção. Tudo isso a partir da visão alucinada e reflexiva de Kaddish que, de seu promontório, observando o microcosmo de Belém, regurgita na lembrança da infância e na memória de outros tempos, para exorcizar seus fantasmas na medida em que toca em sentimentos, paradoxos e conflitos,  por isso o caráter humano dessas deambulações, porque são pensamentos e sentimentos encontradiços em qualquer lugar do mundo. E se não há um fio condutor ou um liame, o que junta as pontas desse novelo são os elementos que determinam as fraturas dessas vidas: crise de idade, viagens interrompidas, paternidade acidental e o amor e vida que poderiam ter sido e não foram. Os atalhos do percurso e as guerras silenciosas de cada um nesses trajetos que guardam analogia com On the Road, Pergunte ao pó e O apanhador nos campos de centeio, amalgamado por um espectro bukowskiano que dá o tom a uma história que assimila também uma certa riqueza imagética e de resistência  típica de uma cenografia pasoliniana.

Estamos mesmo diante de um romance-depoimento, de uma narrativa-testemunho, de confissões geracionais, como um rio frenético e invencível que carrega os atritos e detritos das mais recônditas navegações do ser na contracorrente de seus próprios delírios.

Eis a obra reverberando as idiossincrasias e perplexidades de um personagem (e também de um autor) que leva ao paroxismo tanto a linguagem quanto o seu desalento diante das trucagens mondo cane que aí está:

Sempre me senti um forasteiro. Aprendi a me comportar como um. A me safar como um. Nem sotaque eu tinha. Mais fácil para mim. Não escolher.  (…) Continuo andando com os mesmos frustrados de sempre e só porque eu me sinto bem ao lado deles. O prazer de empurrar por empurrar. Eu também, um frustrado. (…)  Condenados à liberdade, acabamos todos juntos e perdidos, presos no mesmo barco. Não dá pra simplesmente estacionar um barco no acostamento e esperar a tempestade passar. O curso segue. O fluxo segue. A vida deve seguir. Todos juntos e perdidos, presos no mesmo barco. Eu, loser desde o parto. Um moleque branco aguado, criado a leite com pera, tudo pra dar certo na vida segundo esse mundinho machista de merda, mas calhei de ser loser. Branco. E homem. Só mais um fracassado.”

Caco Ishak construiu uma sensível mas avassaladora metáfora da insularidade que muitas vezes é sintoma da realidade contemporânea, tão virtual e isenta do “ser”, impondo a tragédia individual (ou coletiva) dessa desconfortante certeza de nos sentirmos sempre deslocados, perdedores ou forasteiros, estrangeiros de nós mesmos.

Escritor, tradutor e jornalista, mestre em epistemologia da Comunicação pela USP, Caco Ishak nasceu em Goiânia, mudou-se aos cinco anos para Belém e reside atualmente em São Paulo. É autor de Dos versos fandangos ou a má reputação de um estulto em polvorosa (2006) e Não precisa dizer eu também (Ed. 7 Letras, 2013), tem publicado em diversos jornais, suplementos, plataformas e revistas, entre os quais “Poesia Sempre” (Biblioteca Nacional); “Letras na Rede” (curadoria de Heloísa Buarque de Hollanda, Bruna Beber e Omar Salomão); “Ruído e Literatura”, “Na Tábua”e “Orquestra Literária”, tendo ainda organizado com André Czarnobai a primeira galeria virtual brasileira, baixo.calão (2007-2010), voltada à arte urbana e ao lowbrow.

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Eu, cowboy, de Caco Ishak [Editora Oito e Meio, 163 págs.]

Avaliação: _pena-01_pena-01[muito bom]

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Ronaldo Cagiano é escritor

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