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Por Sergio Vilas-Boas *

Apesar do calor infernal naquela tarde de sábado, o apartamento deles (de fundos, cercado por edifícios altos) exalava um frescor reconfortante. O implacável sol de verão nunca incidia na sala de estar e as agitações da rua não penetravam pelas janelas. Ele cuidara para que nos sentíssemos à vontade e não fôssemos interrompidos. Antes mesmo de eu chegar, deixara sobre a mesa jarras de água, copos, uma garrafa de café, xícaras, misturadores e um pote com cubinhos de açúcar.

A curiosidade me dominava.

Lara tinha ido visitar uma amiga.

Os três gatos dormiam no sofá, entrelaçados.

A quietude era perfeita para um diálogo, mas Jaime ainda tratou de levantar a agulha da faixa “Gary’s theme” do vinil You must believe in spring, de Bill Evans, instaurando um silêncio que agora só seria quebrado eventualmente pelo ronronar esporádico da gata amarela gorda.

E desligou o celular [ele pregava que a telefonia móvel destruíra as relações interpessoais e abrira o caminho para “uma nova era de tagarelices num mundo em que cada um cuida somente do próprio umbigo”].

Sentamos em poltronas individuais, próximas uma da outra, frente a frente. Trocamos comentários vazios sobre futebol até ele me fazer uma espécie de exame de fundo de olho.

“Então, Hugo… é o seguinte: tudo o que vou lhe contar aqui deve ficar entre nós. Nem Lara pode saber, ok?”, pediu, sério. Parecia a um passo de revelar uma identidade secreta ou a chave de um enigma. “Outra coisa que você precisa ter em mente desde já é que o Jaime que você está vendo agora é muito diferente do Jaime que escreveu aquela tese.”

Era como se estivesse se referindo a um Jaime que nunca me havia sido apresentado. Expressava-se com racionalidade, mas havia em sua exposição uma desordem inédita [e premeditada]. Defensivo, pisava em ovos. E o fato de eu estar prestes a me tornar psicólogo formado [ou a projeção que ele dava a este fato] parecia pressioná-lo a querer demonstrar um domínio de conceitos que ele não possuía.

Suas digressões, a princípio, não faziam sentido.

Mas agora entendo:

“Tenho uma recordação muito intensa que vai te ajudar a entender um pouco o que me move no mundo. Tem a ver com a Tia Mirtes, irmã da minha mãe. Ela trabalhou como cozinheira na cantina da precária escola pública em que estudei, naquela cidade – uma escola sem água potável, para você ter uma ideia. A água vinha de um caminhão-pipa, de vez em quando. Apesar de semianalfabeta, Tia Mirtes era uma observadora sensível. Um dia, escutei detrás da porta uma conversa entre ela e a minha professora de matemática. Como se fosse hoje, lembro da Tia Mirtes dizendo exatamente assim: ‘Ah, o Jaime vive no mundo dele. Acho que ele não nasceu da barriga da mãe dele, não. Ele veio de outro lugar, e é para esse tal lugar que ele está sempre tentando voltar’. Eu devia ter uns dez, onze anos.”

A essência de suas lembranças denotavam uma hipótese fechada a respeito da formação de sua personalidade, como se seu espírito livre fosse uma espécie de reação radical ao autoritarismo velado de sua mãe e à indiferença explícita de seu pai. [Mais essa: eu me metendo a psicólogo.] Quando captei essa perspectiva, eu quis fazer um comentário, mas ele continuou falando.

Na verdade, ele deu um salto no tempo.

Da infância para a maturidade.

*

O trecho faz parte do romance A superfície sobre nós (ed. Amarilys), que o escritor e jornalista Sergio Vilas-Boas lança no dia 12, na Livraria Cultura do Conj. Nacional, em São Paulo