* Por Daniel Manzoni de Almeida *

 Em seu ensaio “Um corpo estranho” (2008), Guacira Louro faz uma metáfora interessante para abordar os corpos queer, aqueles vistos como “estranhos” aos olhos de uma sociedade tradicional e cisheteronormativa. Para a pesquisadora, tais corpos estão, assim como nos clássicos da literatura ou cinema, em processo de viagem pelo mundo; são os “viajantes pós-modernos”, corpos que não se deslocam geograficamente, mas que estão sempre na estrada da busca por sua própria existência, numa continua reconstrução não só das possibilidades de existir mas, acima de tudo, de resistir. A ideia de viagem trazida por Louro, sugerindo a possibilidade de corpos que se constroem aos poucos, de forma não linear, vai contra a noção de sujeitos unificados, cristalizados, desenhados em linhas retas e progressivas em seu agir no mundo. Esses corpos dissidentes desfrutam das alteridades que encontram no caminho, em troca constante, enquanto rumam a seus destinos, se os houver, numa radicalidade concreta: o corpo queer é a própria viagem!

Não é à toa que mobilizo essa ideia de corpo queer como viagem. É sobre esse tipo de travessia que se edifica Alagoas azul, romance de estreia do porto-alegrense Bruno Coelho pela editora Reformatório, ganhador do 1º Prêmio Caio Fernando Abreu de Literatura, promovido pelo Festival Mix Literário. Em sua narrativa, Coelho nos apresenta Flávio, homem cis que vai ao encontro de sua amiga Alagoas, uma mulher trans hospitalizada após ter sido resgatada de um acidente de avião que despencou em Recife, sem muitas explicações. Alagoas viajava com um dos seus amores, uma mulher cis, o que já foge do que se espera das preferências de uma mulher trans. No hospital, não a encontramos inteira, tem um pedaço do braço mutilado pelo acidente. Flávio também está em pedaços, precisa igualmente ser resgatado de uma tormenta. Aproveita a oportunidade para fazer uma imersão em si mesmo e entender o luto pela morte do irmão, Augusto, que no passado havia se envolvido amorosamente com Alagoas quando esta ainda não havia feito a transição de gênero. Assim, ambos embarcam numa viagem pelo Nordeste, rumo a Bahia, morada de Alagoas.

A viagem proposta por Coelho pode ser vista como uma cartografia literária que nos leva por três caminhos. O primeiro é sobre a trajetória do personagem-narrador Flávio que se joga nessa travessia nordestina para entender a paixão do irmão por Alagoas. Além disso, talvez tenha ido para viver, ele próprio, o romance que o irmão interrompeu com Alagoas quando esta ainda se via como homem cis homossexual. Romance que Augusto talvez não teria bancado totalmente, se não tivesse morrido. Agora está diante de Alagoas e uma nova possibilidade. Em determinados momentos da narrativa, a dubiedade dos sentimentos lançados nos faz entender a disputa entre os irmãos no passado e o modo como Alagoas despertava entre eles uma espécie de desejo mimético girardiano, ou seja, a disputa de desejos entre dois indivíduos por um mesmo “objeto”. Essa nuance do desejo de Flávio nos faz levantar a questão: o desejo está ligado ao gênero ou ao ato de desejar aquilo que o outro deseja? Talvez o fato de Coelho nos remeter a essa faceta teórica de René Girard em sua mimética do desejo (KIRWAN, 2015) nos ajude a pensar as formas de envolvimento emocional dos viajantes pós-modernos na busca por reconhecimento.

O segundo caminho é sobre a nossa própria viagem enquanto leitores e leitoras do romance de Coelho. Em sua experiência proposta de alteridade, somos convidados a uma proximidade muito intensa desses outros, de seus corpos, desejos, de suas ausências e marcas da vida. Nesse livro é como se, de forma muito generosa, Coelho nos apresentasse uma visão analítica de sua própria experiência com o tema. Em fluxo contínuo, sem capítulos, sem as marcações tradicionais de cortes narrativos, a sensação proporcionada pela leitura de “Alagoas Azul” é a de que se está no avião prestes a desabar no céu nordestino e que, assim como a sobrevivente, nos salvaremos, mas dilacerados, perdendo pedaços daquilo que realmente não nos pertence. E assumiremos, a partir dessa experiência, nosso próprio corpo, o qual poderá sentir falta de algo que já não nos pertence mais.

E aqui evoco o terceiro caminho da viagem de “Alagoas Azul”:  a própria experiência do autor com a teoria queer. Coelho não vive como uma pessoa trans, mas como pensador e escritor que se lançou vertiginosamente no universo dos estudos queer e extraiu dessa sua viagem o maior refinamento que a experiência teórica poderia proporcionar, o de se imaginar radicalmente no corpo de uma uma mulher trans com suas especificidades individuais e partilhar o que sentiu. A empatia ensinada por Coelho em “Alagoas Azul” fez tremer até os jurados do prêmio, Cidinha da Silva, Marcelino Freire e Amara Moira, ela própria uma mulher trans. Isso nos faz pensar que a empatia ainda pode ser um corpo de água líquida que pode assumir a estrutura do recipiente que se deseja. É uma questão de se lançar na viagem.

O romance de estreia de Bruno Coelho é um ticket para uma viagem sem volta pela empatia possível na literatura, em que um escritor não necessariamente peca ao falar no lugar do outro, mas sim nos recorda de que é aí, na experiência radical da alteridade, que a literatura ainda se desvela como magia.

Referências:

LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e a teoria Queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2008

KIRWAN, Michael. Teoria mimética: conceitos fundamentais. São Paulo: É Realizações, 2015.

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Daniel Manzoni de Almeida é pós-graduando em História e Teoria Literária pela Unicamp.

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Foto ilustrativa: Madalena Schwartz

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