E stou sentada na privada tem dez minutos, e nada. Já fiz força, apertei bem os olhos, cerrei os dentes até sentir dor na mandíbula e soltei barulhinhos pelas narinas. Acompanho o ponteiro dos segundos no relógio de parede que fica à minha direita. É um jogo mental, em que conto os segundos na cabeça e, ao fim de um minuto, olho novamente as horas para me certificar de que a minha noção de tempo está acurada. São três e meia da manhã. Em madrugadas normais, essa estratégia teria dado certo em menos de 120 segundos. Dessa vez não sai. Tenho dificuldade de fazer xixi e cocô ao menor incidente. E os meus pais estão brigando mais uma vez. Quando acho que vou conseguir, ouço gritos vindo da sala, xingamentos, coisas sendo derrubadas e se quebrando. Meu pai fala que a minha mãe é louca e que vai interná-la; ela urra, você é um galinha, diz que tem cheiro de perfume doce na camiseta. Essas brigas são quase diárias, na madrugada. Invariavelmente, ouço minha mãe chamando a minha avó, aquela velha, de megera. A barriga dói, mas não sai. Desisto, preciso voltar a dormir, tenho aula em algumas horas. Saio do banheiro procurando não fazer barulho e, subitamente, decido me aproximar da sala antes de me deitar. Sigo na ponta dos pés, segurando a respiração que cisma em ficar ofegante. Ouço o coração bater forte, o peito vibra e ressoa pelos ossos até os dedos dos pés. É difícil me manter equilibrada. Me detenho ao chegar na quina da parede formada pelo encontro do corredor com a sala. Não quero sentir o cinto hoje. Respiro fundo, meu coração acalma, não o ouço mais. O silêncio, a escuridão e a sala vazia.

*

Sua porca, que nojeira, Mônica, parece uma favelada. Minha mãe reclama dos arrotos que dou a cada dois ou três goles de Coca. Era o quinto copo do dia. Junto com os outros três de Nescau, foi tudo o que ingeri. Parece que não teremos almoço novamente. Minha mãe está em casa o dia todo, mas anda muito irritada, chora e tudo o que come a faz vomitar. Então ela desistiu de cozinhar. Fica dizendo que vai embora, que meu pai está com a outra e que sou imprestável. Ontem tentei ajudar. Não quero ser imprestável e fazer minha mãe chorar. Peguei alface na geladeira, botei sal até conseguir ver os grãozinhos sobre as folhas verdes e amassei uma banana, igual vi no comercial de Neston que passa na televisão. Minha mãe tirou o prato da minha mão, espatifou-o no chão, sua retardada, os caquinhos foram longe, espalhando a gosma verde e amarela pela cozinha, parece uma abobalhada, só é inteligente na escola, e saiu em direção ao quarto, batendo a porta aos prantos. Caio em lágrimas também. Aumento o volume da tevê. O som do filme é a única coisa que é possível ouvir em casa durante horas.

*

A claridade do poste entra pela fresta da cortina e produz sombras no quarto. O sono pesa as minhas pálpebras. São três e vinte e nove da manhã. Luto para permanecer acordada, quero ver o final do filme. Uma mulher loura, de cabelos curtos, camisola branca se deita na cama. Ela tem um olhar assustado e abraça um crucifixo de metal sobre o peito. Uma voz de menina, talvez da minha idade, começa a cantar: “Um, dois, o Freddy vem te pegar…”, o canto chega com eco e sem emoção, “…três, quatro, o Freddy já vem no quarto…”, há quatro garotas de vestido branco com babados nas mangas, a menor, com uma cesta vermelha, assiste às outras três brincando de pular corda sobre um gramado verde e bem aparado. A brincadeira transcorre em câmera lenta, os cabelos louros da menina que salta sobre a corda balança para cima e para baixo, “…cinco, seis, segura seu crucifixo/ sete, oito, fique acordado…”. Meus olhos piscam cada vez mais demoradamente, mas os ouvidos ainda acompanham a melodia da cantiga, “…nove, dez, não durma nunca mais”… O colchão cede, percebo o lençol da cama repuxar, meus braços, minhas pernas, imóveis, e, então, um peso sobre o meu peito. Minha voz não sai. A respiração acelera, descontrolada. Chacoalho meu tronco com toda força; consigo apenas movimentos curtos de ombros. Não enxergo quem ou o que está sobre meu corpo, mas algo me prende, não quero morrer. Não assim. Grito, choro, minha mãe fala comigo, iluminada pela luz indireta da rua; no canto do olho, percebo uma sombra se movimentando até se imiscuir às outras do quarto. Mônica, para de show, era um pesadelo. Não, não era, alguma coisa subiu em mim, tem algo aqui. A voz da minha mãe fica esganiçada, como sempre acontece quando ela eleva o tom. Diz que precisa dormir, que está muito cansada, que não tem paz em casa nem na hora do sono. Ela se aproxima, põe a mão na minha cabeça. Dorme, Mônica, e reza. Reza muito. É castigo de Jesus por você ser assim, ruim e egoísta. Jesus não gosta desses filmes de terror que você assiste. Vai, reza. Pede perdão pra Deus. Só Ele pode te ajudar.

*

Hoje minha mãe fez miojo e deixou eu colocar dois saquinhos de tempero, de carne e de galinha caipira. Resolvi que não ia arrotar enquanto tomasse Coca para não a irritar. Deito no sofá da sala para assistir Conta comigo na Sessão da tarde. O filme termina e eu fico parada, olhando para a tela meio catatônica, tentando focar em algum ponto além, muito além. Aqueles quatro garotos que só tinham eles mesmos, ao menos enquanto durasse a adolescência; a jornada; a cumplicidade; os sanguessugas; a história do Bola de sebo, e o plano de vingança nojento; a sujeição aos mais velhos… Uns gritos incompreensíveis, duas mãos me balançam, Mônica, tá tudo bem? Deixa de ser esquisita, garota. Minha mãe. Ela ri, fala que pareço maluca. Eu choro, choro muito. Ela diz que sou fresca, pede desculpa, diz que não foi nada, que eu sou muito sensível. Saio correndo para o meu quarto e fecho a porta. Ela vai atrás de mim. Mônica! Mônica! Mônica! Abre essa porta. Na minha casa, porta nenhuma fica fechada. Só queria o meu tempo para ouvir “Stand by me” na voz do Ben E. King e olhar para o rosto do River Phoenix e abraçá-lo e ficar com ele sem precisar falar nada, “When the night has come/ And the land is dark/ And the moon is the only light we’ll see/ No I won’t be afraid/ Oh, I won’t be afraid/ Just as long as you stand, stand by me/ So darling, darling/ Stand by me, oh stand by me/ Oh stand, stand by me/ Stand by me”. Eu te odeio, mãe.

*

Acordo para ir à escola. Não quero levantar, quero dormir só mais um pouco, só dez minutinhos. Minha mãe avisa que não dá, me acordou mais tarde já. Eu não tenho nada com isso, preciso só de mais uns minutos de sono, demorei para dormir, vi aquela sombra novamente, ficou a noite toda próxima ao armário, talvez esperando eu cair no sono. Mas ela insiste, diz que se eu não levantar, vai chamar o meu pai. Ele resolve as coisas no cinto. Levanto aos tropeções. Tomo um café com leite tão devagar que o último gole desce gelado. Minha mãe me apressa, estamos atrasadas. Eu preciso ir ao banheiro. Dor de barriga. Faz na escola, não tenho tempo pra esperar. Não consigo. Só consigo fazer em casa, mãe. Ai, que criancice. Você não tem mais idade pra esse tipo de coisa. Vamos. Eu não vou aguentar, mãe, não vou. Ela abre a porta e não me dá mais atenção. Sigo com ela. Para o carro na esquina, uns duzentos metros da porta da escola. Vai, desce, não vou dar a volta, não, estou atrasada. Escrota, e bato a porta sem olhar para trás. Cruzo o portão da escola mais de 15 minutos atrasada. O inspetor não deixa eu assistir ao primeiro tempo. Tenho que esperar 30 minutos até poder entrar em sala. Fico em um pátio com alguns outros alunos atrasados e os três inspetores que ficam dado risadinhas para as alunas mais velhas. As cólicas aumentam. Sei que só me resta correr para o banheiro. Entro desesperada, a primeira cabine está trancada, a segunda está sem papel higiênico. Não consigo chegar na terceira. Sinto escorrer pela minha perna queimando. O cheiro sobe pelas minhas narinas, as duas garotas que pareciam matar o tempo de aula apontam pra mim, riem, logo a porta da primeira cabine se abre, e mais uma garota fica zombando. As lágrimas atrapalham a minha visão. Entro na cabine mais próxima. Me tranco. As pessoas comentam lá fora, agora, sentada na privada, não sai mais nada. Batem na porta de forma ritmada, estão cantando alguma música para mim. Só quero que todos se calem, morram, desapareçam para sempre. Mas todos são tantos. Eu me odeio e quero morrer.

*

Tiago Velasco nasceu em 1980 no Rio de Janeiro. É escritor, jornalista e doutor em Literatura, Cultura e Contemporaneidade na PUC-Rio. Ministra oficinas de escrita criativa. É autor dos livros de contos Petaluma (Ed. Oito e Meio), Microficções (publicação artesanal) e Prazer da Carne (Ed. Multifoco), além do livro de não ficção Novas dimensões da cultura pop (Ed. Multifoco). Também participou de diversas coletâneas de contos. Em 2015, conquistou o 4º lugar no Prêmio Off Flip de Literatura na categoria contos. Em 2019, foi um dos vencedores do concurso de contos LER Novos Autores; em 2015, conquistou o 4º lugar no Prêmio Off Flip de Literatura na categoria contos. É curador da plataforma Máquina de contos.

 

Tags: