* Por Corinne Klomp *

Nessa época em que a gente debate muito sobre as igualdades, ou desigualdades, entre homens e mulheres,  sobre a paridade e a teoria do gênero, ninguém irá contestar essa afirmação: a mulher tem seios. O homem também, mas menos. Como se ele não tivesse. Não usa sutiã, ou somente em ocasiões especiais, não se interessa pelo formato do seu mamilo e não venderia a sua mãe por implantes mamários. Resultado: o homem não sofre a mamografia. Sofrer, sim, mesmo que o médico, geralmente o ginecologista, prescreva à mulher fazer esse exame. Bom, a primeira vez, ela faz. Como se fosse uma radiografia qualquer. Depois, quando ela descobre o que esse exame é e o que ele provoca, ela vai optar pela precisão, e escolher o verbo adequado, sofrer.

A mamografia. A partir de agora vamos chamá-la carinhosamente de “mamo”, para suavizar a coisa, deixá-la banal, quase simpática, tipo: “Não me espere pra tomar um drinque, tenho a minha mamo!” Momento de grande solidão. Mesmo que você tenha a sorte de estar acompanhada, por um marido, um amante, uma amiga ou… um bom livro. Quando chega a sua vez, é com você, só com você. A mamo, você vai sofrê-la sozinha. O outro, que veio por e com você, fica sentado, te abraça com um olhar meigo, sorri como se dissesse: “Vai dar tudo certo” mas, nesta fase, ele não sabe de nada, e você também não. No entanto, você finge acreditar nisso, a tentação é muito forte, esse exame é uma mera formalidade, vai dar tudo certo, até agora tudo deu tão certo. Se você viesse sozinha, a sua voz interior, aquela da criança tranquila que desde sempre cochila no seu íntimo, começaria a interpretar com convicção e malícia o personagem que conforta você e que se pode resumir em quatro palavras: vai ficar tudo beleza.

As radiografias estão acontecendo. Na presença da moça que espreme seios o dia todo você faz cara de que está tudo bem, como sempre, que bobagem né? Você não grita, apenas ousa uma careta quando essa maldita placa de ferro vem esmagar – talvez estourar – o seu seio direito e depois o esquerdo, o mais doloroso dos dois, parece que tem que ter um, é normal. Você bem que gostaria de berrar: « Porra, puta que pariu, parem com isso imediatamente! » Mas não, não diz nada. Você fica dócil, bem condicionada a reprimir cada manifestação de dor, pois está escrito que ela faz parte do pacote do parto, então você se torna a mulher perfeita, só se contenta em obedecer por quatro vezes às ordens monótonas da menina das placas. Não respire mais!… Respire!…

Agora você está esperando numa salinha. Sempre sozinha, o peito nu e zebrado por marcas vermelhas, num banco desconfortável e frio. Bem debaixo do seu nariz, algumas revistas para matar o tempo. Garantidas cem por cento femininas, nada que vá explodir o cérebro, perigo zero. Uns poucos artigos e um monte de imagens para ajudar você a atingir a perfeição máxima. Estudos que lhe explicam como emagrecer rejuvenescer vestir-se seduzir trepar. Páginas inteiras de garotas com seios que você nunca teve e que nunca vai ter. Você está pouco se lixando para isso. Você gosta dos seus seios como eles são, aliás você não é a única, e o que você quer acima de tudo é mantê-los. Intactos.

O médico chega. O radiologista. Ele já sabe tudo. Antes de você, esse safado. No olhar dele você tenta decifrar o veredito. Mentalmente você está reproduzindo o leitmotiv martelado durante o exame. Não respire mais… A sua barriga se comprime, a sua garganta e os maxilares também, o oxigênio começa a faltar, mas, apesar de tudo, você se mantem corajosa, digna, bem educada. O especialista fala, com poucas palavras e o seu ar blasé: tudo limpo, volte daqui a dois anos. Respire!… Ah, claro que você vai respirar tranquila! Que maravilha! O ar e a alegria se misturam para invadir você com a bola toda, como torcedores pintados em fim de jogo. Nos seus pulmões, nas suas entranhas, na sua cabeça é um dia de festa. Os seus seios nunca foram tão lindos, tão vivos. Eles mereceriam agora mesmo serem mimados por carícias, imortalizados com uma selfie. Aqui não é o lugar, que pena. Você promete a si mesma que vai honrá-los assim que chegar em casa. Mas você não fará isso, a mente já ocupada por outros pensamentos, a felicidade não espera. Às vezes, infelizmente, as coisas acontecem de outra maneira. Não respire mais!… O médico encontrou um nódulo, a gente não sabe direito o que é. Ah. Na sua agenda vital isso não estava previsto. Você só escuta metade do que ele fala… novo exame… quisto?… câncer?… Você não escuta mais. Respire… Hein?! Você está respirando OK, você não tem escolha, mas sufocada, desgostosa, só de corpo presente porque o seu espírito não está mais aqui. E o que mais? Mais uma série de análises extras que vão dar… o quê? Ainda não se sabe.

A vida é uma mamografia. Para cada um de nós. Homem, mulher, outros… não importa. Ela amassa / comprime / magoa você. Ela liberta / propulsa / encanta você. Ela nos mantém no ritmo de um refrão paradoxal. Não respire mais!… Respire!… Esse refrão ecoa mais ou menos forte segundo as circunstâncias, as oportunidades. Ao receber a notícia de um plano de “reestruturação” da empresa, dos resultados do vestibular ou das eleições presidenciais, da lista de mortos daquele desastre de ônibus. Você o ouve quando vai declarar o seu amor, quando quer testar uma nova receita, quando a vendedora está verificando se tem aquele vestido no seu tamanho, quando a vitória vai ser decidida no segundo tempo, quando você está esperando qualquer telefonema / mensagem / sinal / olhar, quando você entrega sua última peça para leitura… Não respire mais!… Respire!… Até a ordem final, que emana do todo-poderoso para uns, da natureza para outros, com uma mudança de peso: a repetição. Não respire mais!… Não respire mais!

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Corinne Klomp é autora francesa e mora em Paris, França. Escreve peças de teatro, roteiros (televisão e cinema), e ficções para a rádio francesa France Inter. Faz parte do Conselho de Administração da Sociedade de Compositores e Autores Dramáticos (SACD) do seu país. Tem grande paixão pelo Brasil e pela língua portuguesa. Começou a aprendê-la ao fim do 2014, depois de ter dado sua segunda oficina de roteiros, no Rio de janeiro, no Festival Varilux do Cinema Francês. Desde então escreve crônicas e contos em português

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Foto ilustrativa de Cartier-Bresson

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