Por Sérgio Tavares *

– Moça, me dá um cigarro?

A voz era sumida; quase um sussurro. Permaneci na mesma posição em que me encontrava, frente ao mar, absorvida com melancólicas lembranças.

O importuno pedinte insistia:

– Moça, oh, moça! Moça, me dá um cigarro?

Ainda com os olhos fixos na praia, resmunguei:

– Vá embora, senão chamo a polícia.

– Está bem, moça. Não se zangue. E, por favor, saia da minha frente, que eu também gosto de ver o mar.

Exasperou-me a insolência de quem assim me tratava e virei-me, disposta a confrontá-lo com uma admoestação. Fui desarmada, entretanto. Diante de mim estava um menino de olhos cinzentos, a me interpelar delicadamente:

– Você não dá é porque não tem, não é, moça?

A sua aparência e o seu jeito polido de dizer as coisas comoveu-me profundamente. Abalada, afastei-me para o lado, a fim de atender ao pedido dele. Não fez nenhum gesto de agradecimento, entretanto. Continuava a encarar o oceano, dirigindo-me frases que eu não conseguia decifrar. Tudo girava, eu não podia acreditar no que via. A minha frente estava Carlinhos, meu filho.

– Você parece que nunca viu o mar, moça.

Mas não podia ser o Carlinhos. Não naquele dia, naquele preciso lugar.

– Onde moro não tem mar.

– Você não é daqui, moça?

– Não, de Belo Horizonte.

Conversamos, então, como velhos amigos. Ou, para ser mais exata somente o menino falava. Contava-me acontecimentos extraordinários, aventuras tamanhas que o supus com mais idade do que realmente aparentava.

Ao fim da tarde, indaguei onde ele morava. Disse não ter morada certa. A rua era o seu pouso habitual. Foi nesse momento que reparei nos seus pés descalços, no escuro das unhas. Deles me apiedei e convidei-o a ir ao hotel comigo. Estava em férias, num quarto amplo e sozinha – acrescentei.

A explicação não o convenceu. Exigiu-me que revelasse minhas reais intenções:

– Como pode me convidar, se não me conhece, se não sabe o que fiz? Você não é uma daquelas pessoas da Assistência Social, é?

Não esperou pela resposta:

– Se for, pode procurar outro, porque eu não quero voltar pra nenhum abrigo.

Dizendo isto, removeu-se do meu lado, pisando sobre os calcanhares.

– Não sou – adiantei-me – E não me importa saber quem é ou o que fez.

Ele parou e, depois de um tempo analisando o meu rosto, adotou novamente uma postura pacífica.

– Será que posso comer um sanduíche?

Respondi-lhe que sim e atravessamos juntos a Avenida Nossa Senhora de Copacabana.

 

Enrolei-o com a toalha de praia, de modo a não despertar a atenção do porteiro ou dos recepcionistas. Imagino que nunca tenha adentrado um elevador, pois trazia nos olhos a mesma admiração de quando entramos no quarto. Perguntei-lhe se não gostaria de tomar um banho. Ele concordou, para em seguida observar que não tinha consigo uma muda de roupa limpa. Dei-lhe o robe de cortesia do hotel, que lhe vestiu até a barra dos pés.

Com o rosto livre da máscara de sujeira, a semelhança com Carlinhos era comovente. O cabelo liso caído sobre a testa, os olhos cinzentos e meigos. Peguei a toalha e comecei a lhe enxugar a cabeça, extraindo daquele gesto um sentimento difuso. Voltava a mim uma maternidade que, embora palpitante, não parecia de fato viva; simulava uma cena que, refletida de corpo inteiro no espelho da penteadeira, soava equivocada e triste. Parei, mesmo sem absorver toda a umidade. Tomei o telefone e disquei para o ramal do serviço de quarto.

Ele escolheu um sanduíche de queijo, cenoura e alface, acompanhado de um copo de leite adocicado. Pediu que eu ligasse o aparelho de rádio e sintonizasse na Nacional, pois sentia prazer em ouvir os cantores e as histórias do Tio Janjão. Contou-me, enquanto mastigava com avidez, que tomou gosto pelo rádio na feira pública, onde ia pelas manhãs oferecer o serviço de carregador em troca de algumas moedas ou de um pouco de comida. Nas ruas, sempre tem alguém ouvindo rádio, moça. É uma coqueluche! – acrescentou, com cativante entusiasmo.

Conversamos até a noite alta, sentados na cama. Ele mal deixava eu abrir a boca. Revelou-me que não tinha nem pai nem mãe; que morava na rua ou em abrigos assistenciais desde que se lembrava, sobrevivendo da caridade alheia ou de pequenos furtos; que fora capturado uma vez pela guarda municipal e levado para o reformatório Padre Severino, de onde fugiu, saltando sobre o muro.

Eu ouvia todos aqueles acontecimentos com um misto de apreensão e encanto, sem saber ao certo o que fazer, embora meu coração deixasse clara a sua escolha. Em dado momento, decidi confrontar a razão e perguntei se ele não gostaria de residir comigo, em Belo Horizonte. Pela sua reação inicial, confesso que pensei que tinha sido um grave erro. Ele se aquietou e, um tanto trêmulo, perguntou porque eu desejaria ter a sua companhia. Disse-lhe que eu gozava de um bom emprego, de uma casa grande e morava sozinha. Visivelmente transtornado, dos seus olhos escorreram miúdas lágrimas de rato, ao me interrogar se eu não estava mentindo. Confirmei que não, então ele se lançou contra o meu corpo, em um abraço apertado e certeiro.

– Eu ainda não sei o seu nome – comentei.

Ele respondeu que não tinha nome, só um apelido de que não gostava muito.

– Posso te chamar de Carlinhos?

– Sim – e sorriu de maneira afetuosa.

 

Minutos depois ele estava dormindo ao meu lado, meio corpo coberto por um lençol fino. Eu fiquei velando o seu sono por um tempo, mas a vigília me cansou e acabei dormitando, com as costas apoiadas na guarda da cama. Despertei com o toque leve de Amador, meu marido, noticiando que Carlinhos já estava de pé, diante das malas na porta da sala, excitado com a chegada do trem na estação, que embarcamos rumo ao Rio de Janeiro, a capital do país, para passar as primeiras férias de família nas areias brancas da Praia de Copacabana, erguendo castelos de areia com baldinhos de plástico, torres frágeis dissolvidas pelas saias de espuma e sorrisos na faixa da arrebentação, onde as ondas cabeceavam cada vez mais agressivas, e Amador corria e mergulhava no mar, gritando o nome do filho, do menino que desapareceu, e passava tanto tempo submerso ele próprio, procurando e afastando-se do litoral, que também não voltava, e agora, de três, eu era apenas uma, diante da imensidão azul, questionando como algo tão belo podia romper uma dor esmagadora. Emergi do sonho como de um afogamento.

 

Estava cedo, mas atravessei o quarto na ponta dos pés e pesquei o telefone. Disquei para o ramal da recepção e solicitei uma chamada interurbana para o Palácio da Liberdade, Chefia de Gabinete. Não tinha esperança de que alguém atendesse ou, caso atendesse, seria a voz sonolenta de alguma secretária, mas, depois de três toques, meu ouvido se encheu de uma saudação familiar, o timbre discreto do meu amigo Murilo Rubião.

– Bom dia, Murilo!

– Selminha? – espantou-se – Por quê está ligando tão cedo? Não está em férias, no Rio?

Conheci Murilo Rubião por intermédio de Amador, que à época ainda se entendia com a paternidade. Eles trabalhavam juntos no Serviço de Radiofusão do Estado de Minas, onde Murilo era diretor. Amador era um leitor inveterado e o gosto pela literatura o aproximaram. Murilo era escritor; ou, como fazia questão de ressaltar, contista. Tinha até publicado um livrinho recheado de histórias estranhas, sobre circunstâncias espantosas e um mágico estagnado do ofício que desprende cobras e andorinhas de suas roupas. Eu o li todo e, ao cumprimentá-lo pela primeira vez, disse que tinha apreciado seu dote. Ele abriu um sorriso comedido, que era o suficiente para iluminar o rosto redondo, acentuado pela ampla calvície.

Ficamos amigos e confidentes. As palavras eram uma paixão e uma tortura para Murilo, que passava meses polindo um conto, mesmo que eu assegurasse que a primeira versão estava muito bem escrita. Quando foi nomeado oficial-de-gabinete do governador Juscelino Kubitschek, telefonou-me e me ofereceu o cargo de datilógrafa na repartição. Eu havia feito o curso com o teclado universal brasileiro e Carlinhos já era um menininho, isento de cuidados mais delicados. Amador viu com bons olhos e aceitei. O que não contávamos era a tragédia que se abateria sobre nós um ano depois.

Ao telefone, falei com Murilo sobre os acontecimentos da tarde anterior, sobre o menino que ronronava ao meu lado e sobre a minha decisão.

– Isso é loucura, Selma! – retrucou – Como pode adotar uma criança de que não sabe a origem, que sequer tem um documento de identificação?

– Assim é mais prático, pense. Podemos tirar os documentos em Belo Horizonte.

– E os procedimentos burocráticos? Qual juiz de família iria chancelar esses pedidos?

– Me ajuda, amigo.

– Selma – e houve um silêncio pesado do outro lado da linha – você sabe que não pode substituir o Carlinhos.

Respirei.

– Sei. Mas eu quero.

 

Murilo anotou o telefone do hotel e prometeu retornar assim que tivesse novidades. Ainda com o fone ao pé do ouvido, solicitei o serviço de quarto e, quando Carlinhos despertou, o desjejum estava servido. Deixei-o comendo e saí à procura de uma boutique infantil, onde poderia lhe comprar roupas novas. Ainda naquela manhã, frequentamos a piscina e almoçamos nas intermediações da área de lazer, debaixo de um colorido guarda-sol.

À tarde, embarcamos num carro de praça e requestei ao chofer que nos conduzisse até a Confeitaria Colombo, no centro da cidade. Vi o menino se transformar numa formiga e, depois de duas marmeladas, um marron-glacé, três biscoitos leques e uma queijadinha, tive de censurá-lo, pois o risco de uma dor de barriga era iminente. Voltamos para Copacabana, no trânsito do lusco-fusco, e caminhamos um pouco pela orla, ainda com as pontas dos dedos adocicadas.

No dia seguinte, a sirene do telefone do quarto tocou. Era Murilo, apossado de sua natural serenidade.

– Estou com os documentos prontos. Preciso apenas que traga o menino para cá.

Minha alegria era tamanha, que cheguei a perder o ar.

– Selma, está ainda aí?

– Sim, meu querido amigo – suspirei – Não tenho palavras para lhe agradecer.

Ele sorriu, em seguida se estendeu um breve silêncio.

– Só há um problema.

– Qual? – contraí-me.

– Como o Amador está… você sabe… tive de preencher o documento de adoção também com o meu nome.

Não consegui elaborar resposta.

– Eu adotei o menino com você, Selma.

 

Dois meses depois, a campainha de casa tocou. Abri a porta e me deparei com Murilo; o habitual terno e gravata, chapéu de feltro e sobre as palmas das mãos abertas uma caixa de cartolina branca, com furos nas laterais e enlaçada por barbantes. Era a sua primeira visita, depois que voltamos. Carlinhos estava sentado à mesa da cozinha, ainda com uniforme escolar, fazendo a tarefa. Em direção a ele, o visitante se encaminhou.

Sem dizer nada, pousou a caixa à frente dos cadernos. O menino se espantou, sobretudo por conta daquele homem desconhecido. Perguntou o que era e Murilo, num tom harmonioso, respondeu-lhe que era um presente. Carlinhos olhou para mim, eu assenti, então rompeu as amarras e tirou a tampa da caixa.

Por sobre as laterias, surgiu um coelhinho cinza. Uma bolinha peluda de focinho agitado e olhos curiosos. O menino ficou encantado.

– Qual o nome dele, mamãe?

– Acho que não tem ainda um. Você pode escolher.

– Você tem alguma sugestão?

– Não sei – temporizei – Por que não pergunta pro tio Murilo?

– Tio, você sabe de um bom nome?

O escritor ergueu os olhos, pensou por um instante e respondeu:

– O que acha de chamá-lo de Teleco?

*

Sérgio Tavares é autor de Cavala e Queda da própria altura

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