Por Paulo Vasconcelos/ Colaboração de Emerson Lopes *

Mauricio Santana é uma dessas pessoas com bagagem humana e literária imensas. Baiano que mora há tempo em São Paulo, professor de Letras da USP, é um pesquisador insone da língua italiana. Simples, quieto, tem prosa refinada para o ofício de tradução. Exemplo é o livro As pequenas virtudes [Cosac Naify, 2015], de Natalia Ginzburg, sua última tradução. Mas há várias outras obras cuja performance discursiva também é de qualidade indiscutível.

Maurício, que, atualmente, prepara uma edição das cartas de Ítalo Calvino para a Companhia das Letras, nasceu em 1968, em Salvador. Passou pelo Rio de Janeiro, onde fez mestrado na UFRJ. Depois, fez doutorado na USP. É professor de Literatura Italiana e Estudos da Tradução na Universidade de São Paulo, crítico literário e tradutor de ‘varias obras afora sua produção literária própria.

O primeiro livro que traduziu foi do espanhol Nestor Canclini, Consumidores e cidadão [Ed. UFRJ, 1995]. Do italiano, foram as Cartas, de Giacomo Leopardi, incluídas no volume Giacomo Leopardi: poesia e prosa, org. de Marco Lucchesi [ditora Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1996].

Li As pequenas virtudes, em dois idiomas – italiano e espanhol. Depois, em português. Senti, então, um desejo grande em conhecer o tradutor. Fui audacioso e procurei-o. Nossas conversas foram por e-mail e telefone. Leia trechos abaixo:

O encontro com a obra de Natalia Ginzbug, como se deu? O primeiro livro que li da Natalia foi Léxico familiar, no final dos anos 1980, quando eu cursava graduação em Italiano na UFRJ. Foi uma grande descoberta.

Qual foi a sua dissertação de mestrado? Foi sobre um escritor italiano ainda pouco conhecido no Brasil, Guido Morselli (1912-1973), autor interessantíssimo, de quem traduzi o romance Dissipatio H.G. [ed. Ateliê, 2001].

Entre as obras de Natalia qual ou quais, você tomou como referência para ajudar na tradução da obra As pequenas virtudesJá li praticamente a obra completa dela. Tenho em casa o volume da coleção I meridiani (Mondadori) com todos os seus textos, de modo que posso dizer que foi o conjunto da obra que respaldou a tradução.

Dos onze ensaios em As pequenas virtudes, qual você destacaria como sendo de maior fulgor e de campo expressivo literário? São ensaios breves extraordinários. Seria difícil destacar apenas um. Mas, se tivesse de escolher, ficaria com  quatro: Os sapatos rotos; Retrato de um amigo; Ele e eu e o que dá título ao livro; As pequenas virtudes. Mas, como deixar de fora, por exemplo, Inverno em Abruzzo ou Elogio e lamento da Inglaterra? A escolha é difícil.

A estrutura estética em Natalia se aproximaria mais da tradução para o espanhol, ou se acomoda bem ao português? Por que o espanhol? Acho que os livros dela podem e devem ser bem traduzidos em qualquer língua. Só depende do tradutor.

Há algo na sua prosa que se assemelhe a Pavese? Não. Eu diria que são escritores muito diferentes. Pavese é todo cerebral, opaco, tortuoso. Nesse sentido, o Retrato de um amigo, que é a fotografia de Pavese, é uma análise exemplar. Já Natalia é luminosa, de uma luminosidade melancólica e clarividente, para quem as coisas mais simples ou terríveis tendem sempre à transparência.

Quais as características explícitas da textualidade da autora que a liga com o neorrealismo italiano literário? Com exceção dos dois primeiros livros, Natalia não participa propriamente do neorrealismo. O que é mais surpreendente em sua obra é como ela trabalha a memória, os afetos, as tensões, fazendo vir à tona o núcleo essencial das coisas com paciência, e, ao mesmo tempo, humildade e obstinação. Nela, a vivência mais íntima e psicológica e a experiência coletiva e histórica de sua geração tornam-se uma coisa só.

Como você comentaria o texto, a seguir, de Cesare Garboli, que vem como apêndice do livro As pequenas virtudes? “Os níveis em que a fisiologia se manifesta e percorre a sua viagem mental se concentram todos na completude do ovo, multiplicando-se e ‘sucedendo-se’ tal como fazem as vísceras. Em primeiro lugar assiste à transformação do tema fisiológico em corpo narrativo (trata-se do nível mais simples): o encontro com o mundo, a entrada na vida, o comer, o parir, a composição e o desdobramento da relação carnal com a realidade em um sistema contagioso de relações que são sediadas no próprio corpo …” (Garboli apud Ginzburg, As pequenas virtudes, p. 142). Garboli, que foi um dos críticos italianos mais argutos de seu tempo, e grande amigo de Natalia, ressalta nessa passagem a importância que tem o corpo, o organismo fisiológico mesmo, no processo de descoberta do mundo pela escrita da autora. Tudo nela passa pelo corpo e aspira a certa completude. Mas esse choque permanente do corpo com o que lhe é exterior, como ele observa mais adiante, provoca sempre uma laceração. Não há plenitude possível, apenas uma expectativa de comunhão que não se resolve.

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Paulo Vasconcelos é mestre e doutor pela ECA-USP. Professor de Teoria Literária em universidades privadas e consultor editorial da área de Literatura, além de contista e poeta com vários livros publicados; Emerson Lopes é jornalista

* Na foto acima, a autora italiana em questão.

 

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