* Por Eliana Alves Cruz *

Assim que recebi o convite para escrever neste espaço comecei minha viagem no tempo, aos tempos soterrados nas memórias de infância e aos primeiros contatos com a literatura. Saindo das obviedades para uma criança da minha geração que eram os contos de fadas e o inevitável Monteiro Lobato, a recordação mais impactante vem dos meus 12 anos, quando obrigada pelo professor — sim, pois nesta época minha dislexia e a pouca habilidade da escola em lidar com ela me afastava totalmente dos livros — mergulhei em Alexandre e outros heróis. Posso dizer que o riso com o mentiroso deslavado Alexandre fez meu cérebro encontrar o caminho certo entre as linhas e que Graciliano Ramos tirou minha cegueira para as letras. A paisagem que admirei em cada página foi a da riqueza em ter minhas raízes fincadas no Nordeste de tantas histórias.

Na minha imaginação de menina, eu podia ver o colorido do superlativo de cada “dois dedos” daquela prosa e tapei com a mão o olho direito perdido e encontrado no meio do espinheiro, seco, coberto de moscas, depois do galope na onça-cavalo. Ficava tentando imaginar como seria enxergar para fora e olhar para dentro, com um olho que fitava o mundo e o outro que mirava as próprias tripas. Eu não era tão cética quanto o cego Firmino, que sem ver, via mais que todos sem jamais cair nas invencionices do velho Alexandre. Eu tinha a alma pronta para acreditar em cada “causo” e ser arrebatada por eles.

Não lembro absolutamente o que escrevi como resenha ou redação daquela leitura aos 12 anos. Não lembro o que disse o professor sobre ele, mas me recordo da sensação de metáfora do conto “O olho torto de Alexandre”. Digo sensação porque ainda criança eu só tinha a impressão de que ele queria dizer algo com tudo aquilo. Algo que meu professor certamente não me explicou. Meu mestre do sexto ano não me disse que, como a maioria, aquelas histórias eram de domínio popular; o velho Alexandre tinha um livro na ponta da língua e que a oralidade era um tesouro. O professor não podia saber que o nordestino me lembrava de meus avôs baianos já avançando nos anos e distantes da juventude do corpo, contando proezas com grandes doses de exageros. Nostálgicos e encantadores. Meu avô paterno, Manuel Bomfim, por exemplo, contava sempre sobre de uma tal tia Cassiana, que carregava na mesma bacia que lavava a criança, uma infinidade de coisas impossíveis. E ele contava com ritmo, com música, batendo palmas, imitando gestos… Eu não duvidada. Não podia e não queria duvidar. Eu queria me encantar e rir e imaginar. Às favas com a verossimilhança!

Que falta faz a falta de sentido neste tempo em que me vejo adulta e em um país que em muito perdeu a capacidade de ser irônico sem praticar violência verbal mais deselegante. Ainda busco a capacidade de ver o mundo como Alexandre o viu com seu olho bom — a realidade da paisagem e do mundo externo — com e seu olho seco, que posto ao contrário no globo ocular enxergava as tripas e o coração batendo, mas também os sentimentos, pensamentos e as pessoas que lá estavam. No final não via nada inteiro, mas tudo se misturava.

“[…] Peguei nele com muito cuidado, limpei-o na manga da camisa para tirar a poeira, depois o encaixei no buraco vazio e ensanguentado. E foi um espanto, meus amigos, ainda hoje me arrepio. Querem saber o que aconteceu? Vi a cabeça por dentro, vi os miolos, e nos miolos muito brancos as figuras das pessoas as pessoas das pessoas em que eu pensava naquele momento. Sim senhores, vi meu pai, minha mãe, meu irmão tenente, os negros, tudo miudinho. […] Estaria maluco? Enquanto enxergava o interior do corpo, via também o que estava fora, as catingueiras, os mandacarus, o céu e a moita de espinhos, mas tudo isso parecia cortado.”

Alexandre admite que o torto enxergava melhor que o direito e este pedaço da narrativa ganhou muitas análises ao longo dos anos. Não ouso contradizê-las ou confirmá-las. Não me sinto apta para isto. Apenas me passa pela cabeça que todos os que considerei bons contadores de histórias seriam capazes de sair a procurar a outra metade do olhar caso percebessem que estavam com um buraco no rosto. Mesmo que para isso fosse preciso cavalgar em um espinheiro montados numa onça. Eu mesma estou eternamente em busca do meu “olhar torto” da realidade, do ângulo esquecido ou negligenciado pelo olho são. Eu também, como os avôs, recrio a memória e como diria Graciliano em “Histórias de Alexandre”: “Um sujeito como eu, passados pelos corrimboques do diabo, deve ter muitas coisas no quengo. Mas essas coisas atrapalham-se: não há memória que segure tudo quanto uma pessoa vê e ouve na vida. Estou errado?”

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Eliana Alves Cruz, carioca, escritora e jornalista (colabora com o site The Intercept Brasil), pós-graduada em comunicação empresarial. Eleita conselheira municipal de cultura do Rio de Janeiro na linha de literatura. Vencedora do concurso de romances da Fundação Cultural Palmares/MINC 2015, com a história baseada na trajetória de sua família, desde a metade do século 19, na África, até nossos dias. Autora na coletânea Cadernos Negros 39 (poesias) e 40 (contos), do Quilombhoje literatura. Também está no livro Perdidas, histórias para crianças que não tem vez, da Imã Editorial. Acaba de lançar seu segundo romance: O crime do cais do Valongo (Editora Malê).

Caricatura de Monteiro Lobato: Américo

 

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