* Por Alexandre Staut *

Outro dia recebi um email de Sophia Faustino, estudante de Letras de 19 anos, que me apresentava alguns de seus poemas. Sophia é uma poeta inédita, nunca publicou em qualquer plataforma. A mensagem veio com a frase: “Há no anexo uma pequena seleta de poemas feitos por mim, 16 ao todo. Foram escritos durante os últimos 11 meses, num trabalho um tanto experimental em termos formais, sem desatar as mãos das linhas do verso. Com e sem métrica, com e sem tradição, já que a própria quebra é hoje influência formal. Caretas de vista, novíssimos em som. Poesia e prosa numa coisa só, tudo harmoniosamente desarmônico no mesmo amontoado. Creio que, além de retratarem sensações e pessoalidades de uma jovem de 19 anos em processo de descoberta, é possível também a visitação de questões universais além do poeta e seu texto, como o amor, a metafísica da vida, do sexo, de Deus, do ofício da escrita…”

Entre as dezenas de textos inéditos e trechos de livros que recebo todo mês, para publicação na São Paulo Review, comecei a ler os poemas de Sophia, e eles me despertaram para uma dimensão de poesia bastante interessante. Escolha do vocabulário, maturidade nos versos, concisão e ineditismo de ideias, humor ácido, conexões elegantes, flerte com a tradição lusófona, tudo isso chamou atenção. Apresento a seguir três poemas da coletânea:

 

II

“É uma cova grande pra teu pouco defunto 

Mas estarás mais ancho que estavas no mundo” Chico Buarque

 

— … como se a vida levantasse, ajeitasse o paletó e saísse andando em pressa pela porta da frente. a vida me disse que tinha planos
por isso é que saiu assim.

há quem diga que a vida voa.
não?
bom, a minha ajeitou o paletó
e saiu em pressa pela porta da frente.

e a sua?
ah, não me vá dizer que a sua te agarra pelo braço e caminha valsado contigo. não compro conversa.
deixa que eu conto que a sua vida faz.

claro que não!
ela está longe de te manter nesses círculos de gentes como este que te trouxe pra esta festa
cheia de outros círculos
conectados em línguas pegajosas.

a vida te trouxe pela ilusão
que ela lavra
em ti aos poucos, sem que percebas.

ela quer que você tome um porre de ilusões até que atinja o coma e que dele não saia mais.

a brisa da ilusão da vida
faz ficar impregnada
aquela sensação das coisas girando
entorno do corpo estirado numa cama sem dono.

ah, é forte sim.
e sem apologias! venho é pra tirar a névoa que criaram por cima da vida.

por mais que a gente pense que nossos heróis morreram de overdose, chega uma hora

que a gente percebe que nossos inimigos também.

a morte vem sempre quando a droga das ilusões da vida ja conquistaram o topo da nossa existência.

e antes que você me pergunte, não: a lucidez é passado. pra mim
pra ti

e pra qualquer outra alma viva.
a primeira dose da ilusão já vem no choro pós parto. daí em diante, só delírio.

é que, como eu dizia,
a vida vem lavrando na gente, semente por semente.
olha ao redor:
plantações e mais plantações.
algumas já tão floridas que nem mais sabem que seja a existência . eu mesmo já não sei.

dá vontade de descer umas décadas

e ter sido dos círculos dos tempos dos nossos pais. aqueles sim, círculos de ouro.
imagina só, um tempo sem a liquidez,
em que os corpos se encaixavam sem látex

e suavam só com o cheiro da noite. a noite hoje só cheira fumaça.
ou desse seu cigarrinho de revolta ou do carbono queimado.

carbono é vida, ouvi certa vez.
camarada meu disse ter lido teoria que nossa vida é poeira de estrela, sabia?

é bonito sim…
no entanto acho mais bonito ainda o possível tempo sem todas essas teorias. sem a de derrubar o estado,
e sem o estado também.
aí sim, tempos de lucidez.

cheguei a cogitar perguntar-te qual o teu tempo de escolha.
nem tempo chegaste a ver!
ainda batem nas suas costas dizendo que é nessa libidinagem de juventude que estão os bons tempos.
te cegaram por palavras de ordem!

política? nem me passa à cabeça tratar-te disso.
está escrito na tua cara pálida lavada que levar bala só se perdida. luta é pra gente calejada.
percebeu que só a minha fala se sobressai nesse círculo-de-dois? não tens presença ou nome,

você não cheira nem seu cigarrinho de revolta.

não te magoa, criatura.
ser massa não é motivo de chacota, muito pelo contrário!

ser massa te deixa mais tempo nos círculos e mais tempo raspando língua.
eu não.

acho que não sou massa desde antes de você nascer.

deixa que a vida te lavre, esperançosa
tortuosa.
te debulhe enquanto ainda há tempo de ser massa.

não ser da massa
tem poder algum.
nem de inibir a droga da ilusão.
só tira a névoa.
transforma a loucura em supremacia de revolta. mas não revolto mais.

pois já sei
que enquanto se tenta pegar a vida pelo pulso e impedir o cruzamento pelo vão da porta
há dor.
fadigaria…

hoje, enquanto ela ajeita o paletó,
eu estico os pés
por cima do sofá de veludo gasto pela luz do sol que é minha existência.

terra podre não se lavra. e lavrador só tem pressa.

 

III 

nas linhas finas
não há mais espaço para as palavras.

o poeta pendurado na parede de meu quarto escondido por detrás do mecenas morreu.

o poeta morreu mas não acabou.
acabou em palavra, não em poesia.
o poeta morreu mas deixou o mais puro dos legados em pedra bruta.

pés fincados n’areia,

sol de queimar a fronte. aconchego fresco,
eram os beijos da água.

a água flerta com as pontas dos dedos do poeta
capaz até de arrancar o chão por debaixo das plantas pesadas.

a água levou o poeta inundado do canto.
sua pena e papel desfazem em meio às ondas.

sem qualquer pretensão alheia.
a mãe dos mares assassinou meu ilê de luz.

não culpo mãezinha
nem sequer a sedução do poeta.

pois que lá no fundo poeta não é poeta. poeta só é
e poeta sempre quis ser.

o poeta morreu para pisar enfim o chão que sempre eu quis,

na tangente do mundo.

 

IV

À minha mãe. 

ó quartzo, quartzo quartzo em meu quarto quarto
de ventre seco

salva minha ama seca ó, pedra rosa
de rosetta
rota, negra

chora

choROSA amoROSA xô!
dores apertos angústias

abre, pedra
o buraco erótico
e andrógino
da vida
antes vã
do brilho alheio às luzes

reflete meu ser

se ainda for

ó, quartzo
ó, lazuli, ametista, argila, tijolo
ó lá a lua de pedra da lua branca tão branca que cega
o espelho da gente,
me mostra a lua ensaiando a terra beijando a terra em ímã

me beija, quartzo

ou te espremo mais. me leva, quartzo
ou nem mais vais.

há de nascer um filho da pedra rosa mas não há de haver esperança

pois que a pedra
sempre
em educação de cabral
ou em caminhos de carlos há de estar no meio

– da palma do quartzo

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Sophia Faustino cursa o segundo ano de Letras na USP

 

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