L eia o trecho inicial da peça Anti-Benjamin, de Ricardo Cabaça (foto), que será publicada aqui quinzenalmente. Ricardo é licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e tem Mestrado em Estudos de Teatro na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Publicou as peças “O primeiro quarto na Bypass #2, Morte súbita”, na Revista Galega de Teatro #78 (Espanha), “Stop Motion para Eadweard”, nas Edições Húmus, “Albert Cossery ou Uma palavra para o dia chegar ao fim” na Revista Ensaia (Brasil), “Storni-Quiroga”, na Licorne, “Depois da última página/ Náufragos”, nas edições Adab, “Gaia, Corpo futuro” e “Dix”, nas Edições Primata (Brasil) e “Albert Cossery ou Uma palavra para o dia chegar ao fim”, na não (edições).

Sua peça “A vida segunda da barata”, a partir de Franz Kafka foi selecionada e encenada na Mostra de Peças em um Minutos dos Parlapatões, em Lisboa e em São Paulo. Participou no Seminário Internacional de Dramaturgia 2015 (Obrador d’Estiu) em Barcelona, na Sala Beckett, com Simon Stephens. Em 2016 foi o dramaturgo português convidado para a residência artística do Chantiers d’Europe, no Théâtre de la Ville, em Paris. A peça “Os náufragos” foi lida pelo elenco do Théâtre de la Ville. Participou no IX Seminário Internacional de Dramaturgia Amazônida (2019) como palestrante e com uma oficina de dramaturgia. Participou no Festival de Peças de um Porvir com a peça “Anti-Benjamin” (2020). Os seus foram encenados em Portugal, Brasil, Espanha e França. O autor é cofundador e Codiretor Artístico da 33 Ânimos, juntamente com Daniela Rosado, desde a sua fundação, em 2012.

***

Anti-Benjamin

 

(no escritório de um laboratório. Eliza, a diretora de marketing, depois da visita às instalações, recebe Oscar, um dos dramaturgos mais importantes daquele país. hoje. ocidente.)

 

1.

 

Eliza – Acredito que esteja surpreendido, eu estaria no seu lugar, aquilo que acabou de ver é assombroso, aliás, modéstia à parte, tudo isto é realmente magnífico.

Oscar – Concordo, tudo é magnífico, como diz.

Eliza – Aceita um café? Água? Whisky?

Oscar – Prefiro um chá.

Eliza – Não demora nada. Pode fazer as perguntas que quiser, vejo pela sua cara que está surpreso. Se não se sentir à vontade eu posso falar sobre aquilo que o traz aqui.

Oscar – É precisamente iss/

Eliza – Posso tratá-lo por tu? Vocês vivem sempre na informalidade, não é?

Oscar – Prefiro que continue a tratar-me por você.

Eliza – Como queira, a formalidade é inteiramente justa.

Oscar – Na verdade estou surpreendido por estar aqui, não vejo o sentido.

Eliza – Pelo contrário, faz todo o sentido.

Oscar – Mas porquê? Com tanta gente que podia ter sido convidada/

Eliza – Precisamente. Uma pessoa com o seu currículo? É um privilégio para nós. Para algo tão grandioso só uma pessoa como o senhor. Ainda por cima o último prémio que ganhou…

Oscar – Mas isso não/

Eliza – Por favor, não me interrompa, é uma das coisas que lhe vou pedir que não faça enquanto aqui estiver. Estamos entendidos? Ótimo.

Oscar – E as outras coisas?

Eliza – Não. Que não responda não à minha proposta.

Oscar – Falemos disso então.

Eliza – O chá está pronto. Açúcar?

Oscar – Conheço o trabalho que desenvolvem, tenho lido algumas notícias sobre os vossos progressos. Nada me espanta, a cada minuto surge um novo mundo.

Eliza – Ai que visão tão pessimista, eu diria a cada segundo. Não concorda?

Oscar – Enfim, eu acho que/

Eliza – Não concorda?

Oscar – Sim, concordo. Perdi-me, não sei o que ia dizer.

Eliza – Acredito que ia falar sobre o trabalho que desenvolvemos.

Oscar – Obrigado. Como deve calcular, o vosso convite foi muito inesperado, fui obrigado a pesquisar um pouco e cheguei à conclusão de que não faz o mínimo sentido eu estar aqui. Já sei, já sei, currículos e prémios, etc. Já viu algum do meu trabalho?

Eliza – Não me ofenda, não o teria convidado se não conhecesse o seu trabalho. Li tudo o que escreveu. Não acredita? Não faça essa cara, não tenho por princípio mentir como argumento. Está a ver porque pedi para tratá-lo por tu? Facilita nestes casos.

Oscar – Tudo? Mesmo os primeiros trabalhos?

Eliza – Tudo.

Oscar – Curioso, não me lembro da sua cara. Sou bom a memorizar caras, mas a sua…Aliás, a sua/

Eliza – Claro que tive alguma dificuldade para acompanhar os seus primeiros trabalhos, menor qualidade, alguma juventude que prejudicou a maturidade da obra. No entanto, os últimos trabalhos são complexos. Parabéns.

Oscar – Agradeço a gentileza. Convidada de honra nas próximas apresentações. Eu insisto, a sério. Voltando à nossa conversa e sem querer ofender, não vejo qualquer ligação entre o nosso trabalho, de certa forma eu critico aquilo que vocês fazem.

Eliza – O que é a crítica na maioria das vezes? É um conhecimento raso sobre a maior parte dos temas, ignorância até.

Oscar – Não me ofende, não é a minha área. O meu trabalho é especular possibilidades e dentro daquilo que faço, sim, vocês são os vilões.

Eliza – Adorava ficar horas a conversar consigo sobre arte, digo-o com toda a franqueza, a sua ousadia fascina-me, essa rebeldia de enfant terrible… talvez um jantar um dia destes?

Oscar – Porque não? Convido-a para jantar no meu  teatro. Podemos tratar-nos por tu?

Eliza – Só fora daqui, devemos manter as aparências.

Oscar – Mas ainda há pouco/

Eliza – As diferenças aproximam teorias, pelo menos acredito nisso, ou mesmo campos opostos. Por exemplo, eu trabalho com Inteligência artificial e você com teatro, um dos maiores dramaturgos do nosso tempo. Percebe o paralelismo?

Oscar – Não.

Eliza – Nós procuramos, há muito, inventar mentes virtuais que se assemelhem à nossa, o nosso Frankenstein sem ficção. Claro que respeitamos a ética, por isso nunca nos atrevemos a retalhar cadáveres e a juntá-los num só. A ficção por vezes é ultrajante, dá exemplos terríveis ao mundo, como o Frankenstein ou o Dr. Moreau. Conhece o filme?

Oscar – Não me parece que a arte seja isso, diria que é uma visão simplista. Os exemplos que referiu são alertas para o perigo da ciência, certos caminhos que podem ser escolhidos por alguém num laboratório. Vi uma versão fascinante com o Charlton Heston e Michael York.

Eliza – Podemos continuar a conversa num cinema? Charlton Heston? Não. Não, é com o Burt Lancaster.

 

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