* Por Nilma Lacerda *

Sacsayhuamán, onde toda escrita é supérflua. A cidadela se basta, solta na paisagem de que o observador disfruta pouco. Os olhos voltam-se para a majestade da construção, as pedras colossais talhadas à mão. Empilhadas umas sobre as outras em encaixe perfeito, por meio delas as epopeias dos povos originários deste território atravessam o tempo e narram coragem, crueldade e saberes ancestrais.

 Cusco, 4 de março de 2011.

“Os incas cortaram pedras sem conhecer o ferro, sem conhecer a roda para transportá-los. Usaram cinzéis de bronze para construir uma arquitetura sólida, simétrica”, diz o guia Abelardo. Cuidadoso com os dados históricos, ressalta que o período do império Inca vai de 1160 a 1583; o domínio espanhol inicia-se em 1533 e estende-se até 1821, data da independência do país. A extinção dos povos indígenas é o legado perverso da colonização, levado a cabo por meio de doenças, como a varíola que matou de 40 a 60% dos 7 a 13 milhões de habitantes de Cusco ou o trabalho nas minas, que como epidemia mortal ceifa a vida dos trabalhadores. Abelardo continua a discorrer, a mita era o trabalho tributário a pagar ao governo, mitayo, o nome dado ao trabalhador. “Quando um trabalhador era sorteado para trabalhar em Potosí, fazia uma festa de despedida com toda a família, porque não voltaria vivo. O trabalho se dava a mais de 4.000 m de altura, por 14 ou mais horas ao dia, a comida era pouca, a tuberculose, muita. Três meses mais, e nova leva de trabalhadores era recrutada.”

A imponência de Sacsayhuamán atinge o visitante, que sobe escadas, atravessa portais, e é capaz de ver levantarem-se, das ruínas que o cercam, altares, casas e prédios públicos. A consciência do valor desse passado grandioso faz hoje de cada cusquenho um aferrado defensor de seu patrimônio cultural. Ficamos no hotel Casa Andina, cuja entrada lateral é ladeada por um sólido

Muro Inca

Este muro foi construído durante o Império Incaico e pertenceu ao ancestral AJILLA VASI, que significa Casa das Virgens do Sol ou casa das mulheres escolhidas.[1]

 

A informação alude às casas para sacerdotisas. Superpõem-se duas camadas de reverência: em face de um lugar sagrado, a perenidade dessas pedras.

 

Por quanto tempo espera uma viagem? Um lugar, como fica enquanto é sonhado, fora de alcance, rota futura ancorada no desejo? Seu desenho se altera, entrementes? Permanecer à espera é um destino? Destino do local ou da viajante? Quando enfim acontece, são estradas, são interiores, em trajeto longo e curioso a percorrer, imune aos anseios imediatos deste século. Viajar é atravessar.

 

5 de março de 2011, a caminho de Machu Picchu. 

No distrito de Cachimayo, em deslocamento por terra até Ollataytambo, a propaganda dá o tom.

Se você tem Claro

tem tudo.

Eu sou Claro. [2]

Em Chinchero, um dos sete distritos da Província de Urubamba, um anúncio oportuno.

Ministério da Educação

Estamos derrotando o analfabetismo.

 

Urubamba, os alfabetizados avançam com a continuidade educativa.[3]

Urubamba é território Claro.[4]

O lugar que atravesso ou pelo qual sou atravessada, a promessa de alcançar em breve parte da selva amazônica me pedem devoção. Não fosse isso, era capaz de a gargalhada explodir pela pretensão da redução capitalista: Urubamba, território Claro! Um rumor de caravelas mais o sonho de mil pajés me aconselham a guardar o desejo do riso e a desenvolver o fio cego da faca. Me aproximo de Machu Picchu, 26 anos depois do desejo. Era para comemorar um aniversário de casamento, e nos preparativos da viagem me descobri grávida. Que fazer? Adiar a viagem, que acontece na hora certa. Em Ollantaytambo, o trem para Aguas Calientes. Não temos tempo de saber nada desse sítio arqueológico, desse lugar de resistência política. O tempo é curto, somos atropelados por vendedores que exibem variados objetos, todos necessários a quem visita Machu Picchu. 8:40 da manhã, o dia se abriu, esplendoroso, uma capa de nuvens descendo sobre o lado esquerdo dos Andes. O Urubamba vocifera furioso.

A Amazônia ignora o movimento agitado de turistas e nativos, o trem avançando serra acima. Assiste à alternância de impérios, à vida e à morte como parte do mesmo ciclo que marca dia e noite, chuva, sol. Nenhuma escrita pelo caminho, nem eu quero caderno agora. Os olhos não bastam para dar conta do mundo à volta.

 

Urubamba. Um rio.

Ao lado do Urubamba, 6 de março de 2011.

De furioso soberano a calmo residente, este rio alterna as faces: magra serpente e lisa fita; feixe monstruoso e água torcida. Aqui, onde podemos nos aproximar resguardados por pequena diferença de nível e barrados pela mureta de pouca altura, o rugido de fera encurralada a empurrar o paredão da montanha recomenda prudência. A voz humana silencia, temerosa. A Amazônia peruana, os Andes à frente, aos pés, o líquido vórtice. Que matéria viva se arvoraria em sobrevivências, acaso fosse presa de suas convulsões?

 

[1] Original: Muro inca / Este muro fue construido durante el Imperio Incaico y perteneció al ancestral AJILLA VASI que significa Casa de las Vírgenes del Sol o casa de las mujeres escogidas.

[2] Original: Si tienes Claro / lo tienes todo. / Yo soy Claro.

[3] Original: Ministerio de la Educación / Estamos derrotando al analfabetismo. / Urubamba, los alfabetizados avanzan con la continuidad educativa.

[4] Original: Urubamba es territorio Claro.

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Nilma Lacerda é autora de Manual de Tapeçaria, Sortes de Villamor, Pena de Ganso, Cartas do São Francisco: Conversas com Rilke à Beira do Rio. Professora da Universidade Federal Fluminense e também tradutora, recebeu vários prêmios por sua obra, dentre os quais o Jabuti, o Prêmio Rio e o Prêmio Brasília de Literatura Infantojuvenil.

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Imagem: Sacsayhuamán

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