Por Ferreira Gullar *

Encontro com Verlaine

A ruptura com as concepções literárias coincide em Rimbaud com outra ruptura: torna-se anticlerical e anticristão, interpela padres na rua e escreve com giz nas praças de Charleville – “Morra Deus!”. É nessa época que, a conselho de Auguste Bretagne, escreve a Verlaine, que o chama a Paris. Rimbaud vai se hospedar com Verlaine e a mulher deste, Matilde, na casa dos pais dela, porque Verlaine estava desempregado. Os dois passam os dias inteiros e parte das noites nos cafés do Quartier Latin, o que provoca o desentendimento de Verlaine com sua mulher.

Quando nasce o filho de Verlaine, Rimbaud, que já não morava com ele, viaja para sua cidade, a fim de facilitar a reconciliação do casal. No entanto, logo é chamado outra vez pelo amigo e volta a Paris, mas pouco depois decide ir para a Bélgica. Verlaine abandona então a mulher para segui-lo. Deslocam-se para Londres, onde Rimbaud começa a escrever as Illuminations. Eles não têm dinheiro, a vida é difícil. Verlaine sente falta da mulher que, por sua vez, inicia um processo judicial contra ele, acusando-o de pederastia. Em meio a essa crise, Rimbaud o deixa subitamente e volta a Charleville. Sozinho, Verlaine adoece e apela para a mãe, que vai encontrá-lo. Chegando a Londres, ela escreve a Rimbaud e lhe manda dinheiro para que venha juntar-se ao filho. Rimbaud atende, mas, logo que Verlaine se cura, viaja para Roche, onde está sua família. Ali, em abril de 1873, trancado no celeiro, escreve Une saison en enfer. Um mês depois, está novamente com o amigo em Bouillon, de onde vão juntos para a Antuérpia e em seguida para Londres. Novas brigas e, desta vez, é Verlaine quem o deixa de repente para tentar reconciliar-se com Matilde, que o rechaça. Então, Verlaine, que se negara a atender aos veementes apelos de Rimbaud, chama-o a Bruxelas, onde está agora com sua mãe.

Rimbaud, mal chega, diz que vai para Charleville. O amigo insiste em que não parta e, no dia seguinte, volta para casa bêbado, exibindo um revólver que acabara de comprar. Chama Rimbaud ao quarto, tranca a porta e lhe dispara dois tiros: “Para você aprender a não querer ir embora!”. Uma das balas atinge Rimbaud no braço direito, sem gravidade. A mãe de Verlaine faz os primeiros curativos e, junto com o filho, leva-o a um hospital próximo. Medicado, Rimbaud decide partir. Às sete horas da noite, em companhia do amigo e da mãe deste, dirige-se à estação de trem. A certa altura do caminho, Verlaine se adianta uns passos e se volta na direção do amigo, com a mão no bolso onde trazia o revólver. Rimbaud só tem tempo de correr. Ao encontrar um guarda, denuncia Verlaine, que é levado para a delegacia. Inicia-se um processo que é concluído com a condenação dele a dois anos de cadeia.

De braço na tipoia, desesperado, Rimbaud volta a Roche, onde termina de escrever a Saison. Manda imprimi-la em Bruxelas e envia alguns exemplares a seus amigos em Paris. Abandona o restante da edição com o impressor, que o guarda na esperança de receber o pagamento de seu trabalho. Esses livros só serão encontrados em 1901, dez anos depois da morte do poeta.

No início de 1874, Rimbaud conhece Germain Nouveau em Paris e segue com ele para Londres, onde ficará um ano vivendo de dar aulas de francês em diversos colégios. Depois de passar os primeiros dias de 1875 em Charleville, parte para Stuttgart. Verlaine, já em liberdade, vai encontrá-lo. Recém-saído da prisão e convertido ao catolicismo, tenta doutriná-lo. Rimbaud o surra e o faz voltar para a França. “Minha vantagem é que eu não tenho coração”, afirma então. Nunca mais voltarão a se ver.

Rimbaud realiza então uma série de viagens, quase sempre a pé: sai de Stuttgart, atravessa a Suíça, penetra na Itália. Em Milão adoece e é recolhido e tratado por uma senhora italiana. No início do verão, segue a pé em direção a Brindisi e volta a adoecer, dessa vez por causa de uma insolação. É então repatriado pelo cônsul francês de Livorno. Em Marselha, se engaja no exército carlista, mas logo desiste e volta a Charleville, em outubro. Passa o inverno com a família, estudando espanhol, italiano, grego e holandês. Em conversa com Delahaye, manifesta a intenção de abandonar a Europa. “E a literatura?”, pergunta-lhe o amigo. “Não penso mais nisso”, foi a sua resposta.

Efetivamente, em julho de 1876, ele embarca para Java, engajado no exército colonial holandês, mas deserta meses depois. Em dezembro, está outra vez em Charleville. Em abril do ano seguinte, consegue dinheiro com a mãe e dirige-se a Viena, mas acaba sendo assaltado na estrada e é expulso do país pelas autoridades austríacas. Volta a pé a Charleville, de onde segue para a Holanda. A pé, atravessa o país e chega a Hamburgo, tentando seguir de lá para o Oriente, mas não consegue e volta para casa. Em outubro, atravessa os Vosges, em parte a pé, na neve; segue para a Suíça, vai até Lugano, onde toma um trem para Gênova. Dali embarca, a 19 de novembro, para Alexandria e de lá para o Chipre, onde se emprega como mestre de obras. Contrai tifo e, em julho de 1879, está de novo em Charleville com a família, mas recupera-se rápido. Passado o inverno, retorna ao Chipre, de onde seguirá para o Egito e em seguida para Áden, na Arábia, à margem do Mar Vermelho. Não voltará mais à Europa, senão onze anos depois, para morrer.

No inferno africano

A impressão que se tem é que, assim que desembarca em Áden, ele se torna outra pessoa. Havia escrito, na famosa Carta do vidente, que “eu é um outro”. Pode-se então dizer que esse “eu”, que não era ele, deu lugar a um outro, que era? Ou seria mais correto afirmar que o adolescente, que se inventou nas noitadas de Paris e nos poemas geniais, tomou de fato horror à poesia e ao desregramento, para na África tórrida e rude reinventar-se como um homem comum, só preocupado com transações comerciais e viagens de negócio?

Tudo o que se sabe desses onze anos da vida de Rimbaud na África é o que está nas cartas que enviou à família. Nunca mais escreveu um poema nem sequer falou com alguém sobre literatura. Quando o indagavam sobre isso, respondia que preferia “não remexer naquele lixo”.

O poeta genial de Illuminations e Une saison en enfer, cuja obra mudaria o curso da poesia contemporânea, vai trabalhar como empregado de uma firma francesa, em Áden, que compra e vende peles e café. Mais tarde, comerciará com armas e com ouro. Guardará cada tostão que ganha, sonhando com o dia em que terá dinheiro suficiente para viver sem trabalhar. Mas esse dia não chegará nunca.

Áden é, conforme descreve numa carta, “um fundo de vulcão, sem uma erva”, onde não chove nunca. A temperatura no inverno chega a trinta graus à sombra e, no verão, atinge níveis insuportáveis. Ele dorme o ano todo ao ar livre. Mais tarde, se fixará em Harar, no Sudão, aonde chega após vinte dias de viagem a cavalo através de um dos mais áridos desertos do mundo. Ali não há nenhuma diversão nem livros nem jornais. Ele trabalha sem parar, organiza caravanas, vai às aldeias comprar produtos indígenas, caminha a pé de quinze a quarenta quilômetros por dia. O clima e a fadiga o consomem. “Embranqueceme um fio de cabelo por minuto”, diz em uma carta.

Cansado de trabalhar como empregado, faz sociedade com Labatut, um comerciante de armas, para vender fuzis ao rei Menelik, de Choa. “Não vá pensar que me tornei traficante de escravos”, escreve ele. “As mercadorias que levamos são fuzis (velhos fuzis de pistão reformados há quarenta anos) que se compram aos comerciantes de armas usadas, na França, a sete ou oito francos cada um. Ao rei de Choa, Menelik, vedemos a quarenta francos.” Mas esse empreendimento foi um desastre. Labatut morre, e Rimbaud, após meses de viagem e de espera para entregar as armas a Menelik, não recebe em pagamento nem o correspondente ao que gastou. Além disso, teve de pagar todas as dívidas deixadas pelo sócio. Volta a trabalhar para o antigo patrão, Bardey, a fim de juntar mais dinheiro e fazer seus próprios negócios. “Minha existência é penosa, consumida por um tédio fatal e por fadigas de todo tipo”, escreve, acrescentando: “O mais triste ainda não é isso. É o temor de se embrutecer pouco a pouco, isolado e longe de toda sociedade inteligente”.

Diante dessa situação, a mãe lhe pede que volte. “Estou demasiado habituado à vida errante e gratuita”, responde ele, “a cada dia perco o gosto pelo clima e a maneira de viver e mesmo a língua da Europa.” Um dia vai até o Cairo e logo se entedia com a vida urbana. “Imagine que carrego na cintura dezesseis mil e tantos francosouro; isso pesa uns oito quilos e me provoca disenteria.” Retorna então a Harar para continuar sua vida infernal, como personagem vivo de um inferno talvez pior do que aquele que imaginara em seu livro célebre.

Entre um e outro negócio, compra uma escrava e vive com ela em concubinato; mais tarde, junta-se a outra mulher também negra. Não se sabe de nenhum escândalo, de nenhum relacionamento homossexual durante seu longo exílio africano. Todos os que o conheceram ali falam dele como um homem reservado e triste, que às vezes fazia rir com suas tiradas sarcásticas. Negociante ativo e responsável, só não perdeu o hábito de andar quilômetros a pé, então à frente das caravanas de camelos. Talvez esteja aí a causa das varizes que lhe surgiram na perna. Um tumor no joelho acaba por obrigá-lo a ir tratar-se na França. Inicia então a viagem de volta, numa padiola carregada em rodízio por dezesseis negros, através de trezentos quilômetros de deserto, até chegar ao porto, onde embarca para Marselha.

Agonia em Marselha

Em maio de 1891, Rimbaud está internado no Hospital da Concepção, em Marselha, de onde telegrafa para a mãe, chamando-a com urgência: “Segunda.feira amputam-me a perna. Perigo de morte. Questões importantes a resolver.” Ele transferira 36.800 francos para um banco em Paris e tem consigo dinheiro “de que nem posso tomar conta”. A mãe vem, ele é operado, mas logo em seguida ela o deixa, alegando que Isabel, a filha com quem vive, está doente. Rimbaud se desespera. Algum tempo depois, a irmã vem lhe fazer companhia, e é por seu testemunho que se conhece detalhadamente a agonia de Rimbaud.

Depois da amputação da perna, ele melhora, começa a se exercitar com as muletas que comprara, mas não para de se lamentar por não mais poder levar a vida ativa de antes. Ao receber alta, vai para Roche, onde está a família. No entanto, a infecção reaparece na perna amputada e, em fins de agosto, ele volta para o mesmo hospital em Marselha. Constata-se então que ele é vítima de um câncer que se propaga pela medula do fêmur e agora se manifesta na virilha. Ele só consegue dormir com a ajuda de morfina. Lamenta-se sem cessar, grita que quer morrer e ameaça suicidar-se, se a irmã o deixar sozinho ali. Entra frequentemente em delírio e, nesses momentos, sua voz se torna mansa: o que ele diz é bizarro e fascinante; fala de colunas de ametista, de anjos, de vegetação e paisagens de uma beleza desconhecida. Isabel, meses depois de sua morte, ao ler pela primeira vez Illuminations, se surpreenderá com a semelhança que encontra entre os textos desse livro e as frases delirantes do irmão moribundo.

Esquálido, temendo morrer, chora abraçado à irmã, que tenta confortá-lo. “Eu vou para o fundo da terra e tu continuarás andando ao sol”, responde ele. Afinal, em 10 de novembro de 1891, ele morre.

Em carta à mãe, pouco antes de ele morrer, Isabel escreve: “Não conte absolutamente com o dinheiro dele.” Segundo a vontade de Rimbaud, que a irmã está disposta a cumprir, três mil francos deveriam ser enviados a seu criado em Harar, que o servira durante oito anos. Trata-se de Djami, um nativo de uns vinte e um anos, que mal sabia algumas palavras de francês e a respeito do qual não há nenhuma menção em sua correspondência. Estranhamente, quando o dinheiro chegou a Harar, Djami já havia morrido.

Os paraísos selvagens

Rimbaud viveu numa época em que a civilização europeia era contestada e se sonhava com paraísos selvagens situados na Ásia e na África. Gauguin trocou Paris por Tai, mas manteve a Europa como mercado de seus quadros. Rimbaud, mais radical, talvez imaginasse viver num barco igual ao que inventa em seu poema “Le bateau ivre”.

No curso daqueles onze anos de vida quase selvagem, sua transformação se aprofunda. No come- ço, ainda tenta conseguir subvenção da Société de Géographie, da França, para realizar explorações nas regiões desconhecidas da África. Não o consegue. Manda então buscar na Europa manual de engenharia, mecânica, carpintaria, marcenaria, navegação, etc. Solicita licença do governo francês para montar em Harar uma fábrica de fuzis e desse modo burlar a proibição imposta ao comércio de armas pelo governo inglês. Esse pedido lhe é denegado. Entrega-se finalmente ao comércio ordinário da região, chegando mesmo, ao que tudo indica, a traficar escravos.

Não apenas a aventura de Rimbaud parece antecipar os hippies de hoje, suas desventuras também: a fuga do mundo burguês leva-o a regiões onde o capitalismo mal penetrara e onde também, por isso mesmo, a exploração do trabalho assume formas mais cruéis. Ele não tem escolha: de explorado passa a explorador. E assim a história desse poeta genial, que desprezou a glória literária e a sociedade capitalista, nos ensina que, se a poesia não nos salva, tampouco nos salva a fuga para supostos paraísos primitivos, situados “antes” do capitalismo. A solução, ao que parece, deve estar no futuro.

Rimbaud reuniu todos os ingredientes capazes de despertar a admiração e a perplexidade de seus contemporâneos, particularmente daqueles que com ele conviveram nos primeiros três anos de sua intermitente estada em Paris. Um garoto de dezesseis anos, chegado da provinciana Charleville, trazendo nos bolsos alguns poemas de surpreendente beleza e originalidade, que violavam os conceitos estéticos, religiosos e morais da época, só podia ser visto como um gênio. Acrescentemos a isso dois olhos azuis de inquietante transparência, que pareciam arrastar, quem os fitasse, ao paraíso ou ao inferno. É que aquele menino, cujos poemas revelavam um lado deslumbrante e perturbador da realidade, comportava-se como um pequeno demônio: exibia-se nu à janela da casa de um amigo que o hospedara, levando os vizinhos a chamarem a polícia; deitava-se, vestido de roupa amarfanhada e chapéu, no jardim de outro amigo, a fumar haxixe num enorme cachimbo, para chocar os transeuntes; insultava e agredia os companheiros de mesa nos bares do Quartier Latin. Foi o que fez, por exemplo, com Étienne Carjat, a quem feriu com a ponta metálica de uma bengala. Carjat, fotógrafo respeitado, autor da célebre foto de Rimbaud menino, que todos conhecem, tomado de fúria, destruiu todas as fotos que fizera dele, exceto três que não tinha consigo.

Genial e polêmico, andarilho aventureiro e poeta inovador, Rimbaud até hoje provoca reflexões apaixonadas por sua personalidade fascinante e enigmática.

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Os trechos acima fazem parte do livro Autobiografia poética e outros textos, com reunião de escritos e entrevistas do poeta Ferreira Gullar [editora Autêntica, 160 págs.]

Avaliação: _pena-01_pena-01 [muito bom]

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