22 de setembro de 1973

O calor é insuportável na cela sem qualquer conforto. Pode-se ouvir o zumbido de um inseto voando por ali. A gente fez o que devia fazer, Joe. Eu sei disso. O lugar tem pouco mais de doze metros quadrados e cinco homens dividem seu espaço. A gente prometeu e a gente cumpriu. Essa lei não é maior que a promessa de um homem. Não, não é. Cospe no chão e pisa a saliva, arrastando o pé que calça uma bota de couro de cobra. Couro falso, boa imitação. Não fizemos nada errado, Joe, a gente só cumpriu a promessa. Milton dirige-se ao amigo que, em silêncio, traga seu cigarro e faz bolinhas de fumaça ao soprar. Eu sei, Milton. A gente fez o certo sim. Ele deve estar feliz com a gente, mesmo que tudo não tenha saído totalmente como ele queria. Os outros três inquilinos da cela olham desconfiados para os dois amigos cabeludos, sujos, que conversam uma conversa estranha sobre promessa cumprida.

21 de setembro de 1973

Segura firme, porra, Milton! Isso tá pesado pra caralho! Disse num sussurro agoniado. O caixão de mogno escuro com detalhes em metal dourado deslizou da mesa de apoio em sua base de mármore branco e, por pouco, não caiu sobre o piso da capela mortuária. O lugar é pequeno, algumas cadeiras espalhadas, uma mesinha de apoio. Cheira a velas queimando e incenso barato. Há ainda, no ar abafado, um odor persistente e enjoativo de flores mortas. Anda, cara, levanta isso. Força, isso, aí, assim, vamos, juntos. Porra, to me fodendo desse lado, Milton, com a quina desse porra. São dois homens suados tentando carregar um caixão muito pesado. Jeans surrados, jaquetas de couro e camisa florida. Ambos expõem seus bigodes e barbas sob chapéus que cobrem vasta cabeleira Aproveitando-se da ausência de Mr. Brian, dono do serviço funerário, invadiram o lugar e resolveram cumprir o ultimo pedido do defunto ilustre. Estacionaram a camionete perto da capela ainda na noite anterior. Estavam de tocaia já fazia um bom tempo. A região é praticamente deserta, poucas casas e muitos insetos. Beberam bastante, fumaram o suficiente, cheiraram demais. Muito tranquilamente dormiram esperando o momento certo para adentrar o imóvel. Estavam chapados, mas decididos. Eles sabem muito bem o que devem fazer, mesmo com toda a dificuldade e risco. Foda-se, foi o que disse o mais novo deles, a gente vai fazer o que é preciso, Joe. Passam dez minutos das quatro da madrugada e a facilidade que encontraram para entrar na capela contrasta com o desesperador processo de arrastar o enorme caixão até o carro. Vamos, Joe! O caixão caiu sobre o piso cerâmico fazendo um barulho enorme. Caralho! Fodeu! Pensaram em correr, fugir. Nada, nenhum sinal. Por minutos esperaram o pior, a presença de Mr. Brian, a polícia, os cães. Nada. A respiração voltou ao normal, a adrenalina baixando, a vontade de rir de tudo aquilo. Vamos aproveitar e arrastar até o carro. Rápido, me ajuda a empurrar essa coisa.

19 de setembro de 1973

Há horas bebe e se droga. Lá se foram três garrafas de tequila, algumas canções, muitas saudades e todo o vazio do mundo. Emily deve estar em São Francisco, ele pensa, ela deve estar cantando as novas canções do disco. A voz enrodilhada nas escamas da serpente, o guizo do chocalho é quase um om percussivo que parte do estômago e não do coração. O sol partindo-se em mil pequenos pedaços, como lantejoulas cor de ouro, mergulha pelas pupilas dilatadas que se expandem como a flor de lótus na parede do quarto. Ele estica a mão para tocá-la e ela se recolhe, como um animalzinho tímido que teme o contato. Ele se aproxima devagar, estende a mão e toca-a, não é uma flor, são os cabelos de uma deusa que lhe sorri e desaparece pelas persianas que cobrem a janela.  Dedilha ao violão uma velha canção e canta no quarto de hotel, para ninguém.

A afinação em sol aberto, como aprendeu com Keith naquele exílio no sul da França, permite que os cavalos selvagens partam do violão e corram melhor, livres, em belos trotes pelo deserto, pelo Colorado, pelas ruas de Los Angeles. Ri de seu caminho sem volta e vira mais um copo de tequila. O quarto fede a nicotina e comida estragada. Sobre uma pequena mesa, um resto de pizza e nachos. Algumas latas de cerveja espalhadas pelo chão, pontas de cigarro transbordam dos cinzeiros e parecem saltitar, como pipocas de cabeças escuras. Ele está nu com seu violão e seu desespero. Faltam dois meses para completar 27 anos e parece já ter vivido meio século. A voz engrolada, antecipando o grunge, engole as palavras e ele parece apagar, devagar, sumir como a felicidade que escorre pelos cabelos daquela deusa que mora nas persianas.

20 de setembro de 1973

Joe e seu amigo Milton estão arrasados com a perda do ídolo e companheiro. No pequeno apartamento que dividem no Morrison Motel, em Morongo Valley, tentam assimilar a tragédia. Se a gente tivesse vindo antes… lamenta Joe. Ouviram na rádio local que o corpo será velado no dia seguinte na capela de Mr. Brian Jones, ali mesmo, pertinho, em Joshua Tree. Na vitrola roda um disco dos Flying Burrito Brothers e eles se embriagam na tentativa vã de afogar a tristeza. Cara, não dá pra acreditar. Porra, que merda cê foi fazer, Gram! Milton cantarola:

A gente precisa fazer algo, Joe. Ele se vira para o amigo que enrola um baseado. Isso não pode acabar assim, é sacanagem, meu. Joe acende o cigarro e traga fundo, olhar perdido no teto. O que você acha que podemos fazer, Milton? Passa o cigarro ao amigo que dá de ombros Não sei, só sei que não podemos deixar passar, Joe. Traga o cigarro e aprisiona a fumaça. Era desejo dele, você sabe. A gente prometeu, cara. Nos olhos escuros de Joe parece brilhar uma luzinha sacana.

13 de Junho de 1972

O quarto do hotel está cheio de gente maluca. Todos estão sorrindo e se drogando. Garrafas de Jack Daniels parecem brotar das paredes e são sugadas com sofreguidão. O show acabou há mais de três horas e todos estão celebrando e discutindo os eventos ocorridos. Dizem que muita gente foi em cana, você tá sabendo? Pergunta Joe. Sério cara? Não vi nada. Estava chapado. A porta do quarto não consegue conter os gritos de gente trepando, mas ninguém presta mesmo atenção aos gemidos que se sucedem. Gram dedilha o violão com um grupo de amigos e não parece dar conta que a vitrola está tocando a voz afeminada de Mick Jagger. Alguém aquece um pouco de heroína e prepara uma seringa. Muitas daquelas pessoas estão lá por causa das drogas que circulam gratuitamente em grande quantidade. Coisa de primeira, Milton disse-lhe Joe ao convencer que fossem a Tucson para o Show dos Stones. Joe era amigo de Gram e tocaram juntos na primeira banda fundada pelo amigo, ainda adolescente, a The Shilos, em 1963. Consegui acesso aos caras, Milton, vamos lá. O show da turnê do Exile on main Street foi um pouco tumultuado, com algumas prisões e muita pancadaria. No quarto de hotel, em meio a baderna, Joe e Milton ouvem o amigo tocar:

Ao final da canção ele diz premonitório: Quando eu morrer, não deixem que me enterrem. Quero que queimem meu corpo no deserto e que haja festa, bebida, alegria.  Os olhos de Gram estão colados ao olhar surpreso de Joe e buscam a concordância de Milton. Corta essa, Gram. Que papo de morte é esse? Joe conhece o amigo e enxerga os pequenos demônios que, por vezes, costumam costurar sua face. Promete pra mim, Joe? E você, Milton? Foi quando Keith e Anita entraram na sala acompanhados por um batalhão de parasitas.

21 de setembro de 1973

A duras penas conseguiram depositar o caixão na carroceria da camioneta. O sol já está dando as caras no fim da rua. São cinco da matina. Apesar do cansaço, nota-se uma certa leveza em suas expressões. É possível mesmo ver um sorriso nascendo nos lábios de Milton. Conseguimos, Joe. Entram no carro e partem em disparada pela rua silenciosa, como se fossem assaltantes de banco. Ainda não conseguimos, Milton. Ele pediu pra gente queimar o corpo e celebrar, lembra? Milton estranha o trajeto. Por que não vamos pela Desert Air Road, Joe? A camioneta azul desbotado seguiu pela Park, que aquela hora da manhã estava completamente vazia. Vou pegar a Quail Springs Road, Milton. Menos gente para correr atrás de nós. Seguiram em silêncio por longos minutos. A paisagem deserta preenchia a janela da camioneta, desconcertava seus passageiros. Atrás, na mudez fria da morte, Gram cumpria a jornada que sonhara. Aqueles dois malucos estavam decididos a queimar seu corpo no deserto em Joshua Tree. O caixão, coberto com uma lona preta, passou despercebido na portaria do Parque. O rapaz estranhou apenas aqueles dois junkies estranhos e muito falantes naquela hora do dia, mas deixou que passassem. Pegaram a Park Blvd e na altura de Cholla Gardens saíram do asfalto e percorreram alguns quilômetros levantando poeira. Pararam a camioneta perto de uma pequena formação rochosa que lhes dava abrigo de qualquer olhar de curiosos. Perceberam então um pequeno grande problema. Como queimar um caixão se não havia madeira por perto para a fogueira? A gente joga a gasolina no caixão e taca fogo, Joe. A ideia não era de todo má, embora mesmo Joe soubesse que aquilo não seria suficiente para cremar um corpo. Vamos juntar esses arbustos secos, o máximo que a gente conseguir, e cobrir o caixão com eles.

19 de setembro de 1973

Dolores, a camareira, bateu na porta diversas vezes. O hóspede do quarto 4E, um astro do rock, não dava as caras há dois dias. Queixou-se ao gerente que, após insistir por algum tempo chamando-o pelo nome, Senhor Gram, Senhor Gram, abra a porta, por gentileza, resolveu usar a chave mestra e abriu a porta do quarto. O cheiro era insuportável, uma mistura de álcool, urina e vômito. Nu, sobre o colchão, abraçado ao violão, jazia o corpo frio e aparentemente sem vida do jovem compositor. No jornal do dia seguinte diriam que uma combinação de álcool, basicamente tequila, e morfina, havia paralisado o coração de Gram Parsons. Contam que, levado ao Hi Desert Memorial, foi declarado morto ao meia dia. Dolores jura que as persianas do quarto se movem sozinhas, misteriosamente, e que por esse motivo evita o máximo possível passar pelo quarto 4E.

21 de setembro de 1973

O parque nacional de Joshua Tree é uma flor do deserto. É lá que o Mojave beija o Colorado e nos dá a árvore de Josué. Lá é a casa dos matacões, que se sobe em dias bons; lar dos ocotillos e dos cactos cholla, que dão ao parque sua cara de paisagem fora da Terra. Ele adorava isso aqui, Milton. O silêncio penetrava fundo. Eu também gosto muito, Joe. Longos horizontes descansam sobre manchas minúsculas de cactos e plantas pré-históricas. A sensação de vazio absoluto brota em cada pedra daquele enorme deserto. Joe amarrou a borracha no braço esquerdo e espetou a seringa. Foi imediato o efeito da droga. Milton, que já se picara, encostou-se na roda da camioneta e admirou o fogo que consumia o corpo de Gram Parsons.  Joe se deitou na carroceria e olhou para o céu. A fumaça escura desenhava dragões no azul que parecia se mover em espiral. O azul se move em espiral, Milton, e é lindo, cara! Milton admirava o fogo dançando sobre o caixão, o estalido típico do mato seco consumido pelas chamas. No rádio do carro, a voz de Jim Morrison, que morrera dois anos antes, cantava para os dois:

Joe, hey, Joe! Gram deve estar feliz com a gente, bicho. Milton jogou a garrafa vazia de Jack Daniels numa pedra, estilhaçando-a. Joe viajava nas costas do dragão e cantarolava baixinho riders on the storm. Ambos dormiam quando a polícia chegou, alertada pelo rapaz da portaria do parque sobre dois estranhos e a fumaça preta perto de Cholla Gardens. Malucos do caralho, rosnou um dos policiais, um brancão enorme, redneck, cabeça de tanque. Acorda aí, traste, berrou ele empurrando com os pés o corpo adormecido de Milton. Assustado, ele olhou para aquele paredão de músculos e grosseria, de olhar inamistoso e todo poder estampado na farda e no cacetete exibido com orgulho. Paz e amor, brother, foi o que disse antes de levar a primeira cacetada nas costas e ficar no chão, estrebuchando de dor, enrodilhado no próprio umbigo, como um feto gigante que padecesse de cólicas tremendas. Joe, ainda chapado, acordou com aquele barulho todo, ainda em estado de sonho, não distinguindo o pesadelo que via, da realidade que era. Que houve, bicho? Perguntou ao outro policial, um jovem calado, mas aparentemente tão violento quanto o outro. Que porra é essa que vocês estão fazendo? O vento soprava os galhos secos que cobriam o caixão, mostrando-o ainda muito inteiro e preservado. Aquilo é um caixão que vocês estão queimando, drogados do caralho? Perguntou o mais estúpido deles. Esses porras só têm merda na cabeça. O mais novo lembrou-se da ocorrência em Joshua Tree. Esses são os malucos que roubaram o corpo daquele roqueiro que morreu de overdose. Deve ser o corpo dele ali no fogo. Joe, ainda sob o efeito da heroína, não conseguia articular uma frase com sentido.  A gente, sabe? Vai explicar tudo. Tudo tem explicação. A gente não roubou nada. Foi uma promessa, sabe? Não conseguiu continuar a frase, pois o cacetete resolvera estudar a geografia do seu corpo esquálido. Foram-se duas costelas incólumes, agora partidas. Algema esses porras, Edgar. Os bombeiros estão chegando aí. Milton ainda tentou apaziguar as coisas,  Paz e amor, irmão, fazendo o dedo em V. Paz e amor é o caralho, cabeludo. Teu tempo acabou, acabou, acabou…

22 de setembro de 1973

Continuam presos os dois indivíduos que roubaram na noite de ontem o corpo do rock star Gram Parsons. Segundo informações da polícia, os dois homens estavam totalmente drogados e tentaram queimar o corpo do artista num ritual estranho. Especula-se que façam parte de alguma seita satânica. Gram Parsons faleceu no último dia 19 de setembro, de overdose, e junta-se agora a galeria de jovens roqueiros mortos na flor da idade, como Janis Joplin, Jim Morrison e Jimi Hendrix.

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Leonardo Almeida Filho (Campina Grande/PB, 1960) é professor universitário de Literatura brasileira e portuguesa, escritor, ensaísta, poeta e roteirista. Mora em Brasília. É autor de Graciliano Ramos e o mundo interior: o desvão imenso do espírito, entre outros.

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