Por Paulo Ribeiro *

Iberê, no meio da noite, acordou-se banhado em suor. Durante os poucos minutos que adormecera, debateu-se muito. Maria, em vigília, prontamente o atende. Iberê arde em febre. Nas últimas semanas enfraqueceu, está magro, sem forças. Maria alcança-lhe a água. Iberê rejeita. Quer pintar. Quer somente pintar. Que Maria o leve para o ateliê.

Em 65 anos de convivência, Maria nunca ouvira um pedido tão incisivo. Maria compreendeu que nem adiantaria tentar demovê-lo, aquilo era uma ordem. Por fim, numa última esperança em impedi-lo, Maria argumenta que era noite de folga da empregada — como poderia conduzi-lo sozinha ao andar de cima do prédio ao lado?

Iberê pediu-lhe então que fosse até a casa em frente, que chamasse a vizinha para ajudá-la. Maria assim o fez, e logo depois, em plena madrugada — como se conduzissem uma padiola escada acima — as duas mulheres carregaram o pintor até ao seu ateliê.

Maria observa Iberê em frente à tela inacabada. Maria nota com que vigor, com que força ele se lança à tarefa de procurar ainda a luz, ainda o ponto, ainda o plano, ainda a forma. Maria participa desse desenfreado desiderato. A vizinha por fim desistira de ficar acompanhando o trabalho, retornara à sua casa. Iberê e Maria estão a só no grande ateliê. A madrugada avança e Iberê trabalha sofridamente. Padece as dores. Mas essa dor física não lhe afeta, contudo, o gesto artístico, que é um gesto com a mesma e costumeira paixão.

Maria o acompanha, auxiliando, alcançando material, lhe dispensando afeto e carinho. Estão os dois em frente ao quadralhão inacabado.

A tela duela com esse corpo já quase morto. O brilho espesso, a alvura vítrea do quadro refrata a face do pintor. Está de joelhos, Iberê está de joelhos e com a mão firme. Uma mão que luta, muito viva, com a tela por fazer. Trabalha essa mão. Trabalha essa mão. Em seu desespero, com as pernas entrançadas, Iberê leva a mão quase segurando-se à tela. Seu corpo pesa. Embolado. É a tela, com seu grito tétrico de horror e apego que o prende ali. A tela inconclusa, a tela que o insatisfaz. É preciso, então, suportar o embate final, último, derradeiro.

Ai dor! Ai, que dor de Deus!

Maria o assiste. Atravessa a madrugada o pintor a trabalhar no grande quadro.

II

Em 1981, Iberê matou um engenheiro a tiros. Foi preso, julgado e absolvido em legítima defesa.

Jamais, no entanto, levantou. Estava soterrado pela tragédia, estava soterrado pela prisão, pelas manchetes, pela sua consciência em agudo remorso.

Iberê matou um homem. Isso faria com que deixasse de patinar, de repetir-se numa arte abstrata e cheia de signos inúteis que havia empacado sua esplêndida trajetória.

Iberê, ao sair para comprar Cartões de Natal, se depara com um casal brigando.  Viu o homem agredindo a mulher e saiu em sua defesa. Foi jogado ao chão pelo halterofilista. Ato contínuo, disparou duas vezes.

―A minha bomba atômica. A bomba atômica que caiu sobre a minha vida‖, costumava dizer.

Deixou então o Rio. Voltou a Porto Alegre. Ali, instalou sua moradia e o ateliê aos fundos da casa.

Passeava então pelo Parque da Redenção quando observava as moças de bicicletas em torno dos canteiros em divisão. Elas o inspirariam profundamente tão logo assumisse de plano as ―fantasmagorias’ internas que iam ser a sua condição.

Sua mão, tintas, pincéis e paleta o atraiam para a deformação. Era um homem atormentado, era um homem banhado de angústia e remorso, não haveria outra condição.

Iberê sabia que havia sido subjugado por uma força que não experimentara até então: passa a ter pesadelos com mulheres esquálidas e encaveiradas que tomariam o seu mundo interior.

A virada acontecera. Da tragédia Iberê renascera e é quando vai mais fundo mergulhar na sua forma de expressão. A tinta torna-se mais pastosa, a mão torna-se mais contundente, joga-se de corpo no fazer artístico. Está profundamente consciente que chegara a reta final.

Amargurado, mas em plena forma artística, Iberê passa ao seu acerto de contas com a vida e isto inclui voltar ao trem da infância, à Linha Férrea de Restinga Seca, ao vermelho quente do carvão em brasa que tocava os vagões.

Dois tiros e o grotesco o tomaria. A estética do grotesco assume então a linha de frente da paleta que segura. Iberê mergulha então numa espécie de figurativo abstrato, o  que significa tomar as figuras de suas memórias e transpô-las para o mundo da sua fantasia atormentada.

Helena, sua doméstica, passa a ser então o modelo de tais elaborações. Quadralhões também surgem. Aumenta as dimensões das telas, desesperança com algo que ainda pudesse vender.

Vai  agora  pintar  para  si  e  para  “os  Holandeses”,  os  únicos  com  capacidade  de pagar.

Desencantado com um mundo que lhe parece absurdo, Iberê mergulhará no mais profundo de sua gênese criativa. Mergulhará na mais acabada transfiguração no seu processo criativo.

O pintor denomina esta fase justamente de Síntese — e ela coincide com a sua decisão de remexer nas gavetas, de escrever as suas memórias, já que também tinha o dom de escrever. Começa a escrever reflexões estéticas ao mesmo tempo em que refaz  passagens de sua infância. Haverá uma forte junção destes dois procedimentos na sua produção final.

Haverá uma junção do homem que pensa sobre a arte e a mão pesada que saiu por detrás da Cela X-2 do Regimento Marechal Caetano de Farias. E oportunamente denominará esta fase de Síntese.

Nota-se, a partir daí, como o pintor, através da representação de figuras  idiotizadas, e autênticos zumbis humanos, expressa uma postura e traços grotescos. Iberê de fato está, ali, encarnando o mais profundo desta tradição estética.

O ponto dessa radicalização figurativa e o momento em que aparecem essas contundentes  inserções  deformativas  em  sua  pintura,  essa  contundência  modernista  ao ― esqueletizar a forma‖, pode ser demarcado a partir de uma série de quatro óleos denominados, Fantasmagorias, do ano de 1987 — e, significativamente, no ano seguinte será publicado o seu livro de contos, No andar do tempo.

Mas, a afirmação dessas figuras, desse descarnamento do modelo, que se projeta como personagem de sua pintura, só acontecerá um pouco depois, na série Os ciclistas, 1989, em que pessoas e o trem da infância estão no corpo das telas. E será somente na série seguinte, As idiotas (1991-1992), que Iberê atingirá a plena transfiguração, quando Helena, a doméstica, aparece como figura principal. Mais que uma figura, um personagem seminal.

III

A doméstica agora está ali: nua no ateliê, deixando seu corpo à mostra, seu modelo, em plena exposição. Iberê a desenha com rabiscos bruscos, olha fixo para os coxões de Helena, mas em sua memória está uma certa D. Jalusa, engomadeira de sua infância.

Jalusa trabalhava as golas e punhos com gelo e é disso que Iberê lembra ao empastar de azul escarlate o dorso de Helena. Se em casa Jalusa era recatada, na igreja reverente, a mão agora sôfrega do pintor ia confluindo para a transfiguração. Para o gesto irrecatado, para a irreverência na feição. Uma idiota surgirá ali aos bufos de Iberê, na entrega, no mergulho profundo que chegava à Maria assustar.

Jalusa possuía 45 ferros de passar. Serão 45 pinceladas pastosas que a tela irá receber.

E raspará com a espátula, e passará mesmo os dedos nessa mulher imodesta que começa a surgir.

Incomplacente mão. Imoderada mão, mão tomada de forças ocultas que fazem Iberê atravessar a tarde no apressado intuito.

Depois, levara dias para acertar um vinco, um plano, um fundamento. Por ora, é quase uma criação instintiva, um furor criativo, uma necessidade vital de transfigurar a realidade que é a Helena modelo.

Agora é a hora de suplantar o modelo, de sair fora das linhas traçadas e soterrar-se do descapricho, empregar o mais impulsivo gesto da mão para deixar o corpanzil nu.

A saia plissada que usava Jalusa será desajeitada num gesto da mão arguta, uma  mão grotesca mesmo ao entreabrir as pernas da mulher que irrompe na tela.

Arreganha-se num sorriso sórdido o rosto da idiota. Arreganha-se e zomba com descapricho o que havia de aprazível e afável na recordação. A recordação será transplantada para um sem molde, um pincel com a mão tomada de forças estranhas que a tela vai atacar.

Iberê investe contra esta figura da mulher. Jalusa ou Helena, já nenhuma o satisfaz. Empasta então a tela. Empasta. Engrossa com a tinta azulada ainda mais os coxões. São seus fundamentos postos em prática: transpor, transpor.

É nisso que acredita. E aí se dá conta que a memória ―já é outra coisa. A memória neste ponto lhe é traiçoeira, porque é uma memória infantil e suplantada pelo espírito do homem sofrido e amargurado.

Iberê morde os lábios. O Olhar fixo, concentrado. A paleta a lhe fornecer as grossas camadas de tinta que sepultará todo o resto de hóstia que haja na Jalusa do seu tempo de menino.

Jalusa reza o terço e Iberê o soterrará.

Jalusa vai à igreja e o templo será representado como um insignificante fundo de  tela com suas torres mal traçadas.

Dois riscos é a igreja e só.

Iberê trazia a pureza da infância para a amargura da vida adulta. Tomado de desencanto, tem uma busca agora só: a idiota de sua tela deve ser a sua melhor confissão. A confissão de que a arte é mergulhar em forças ocultas e voltar com a realidade então transfigurada.

― D. Jalusa Belly era grave e sossegada no andar, contava Iberê rebuscando na memória.

― E é exatamente isto o que não quero, dizia.

Queria a transposição, queria a transfiguração do retrato em outra forma. ―Isso é a arte, afirmava olhando para A Idiota que batizara.

Confiava plenamente neste figurativo abstrato, acreditava firmemente nestas figuras idiotizadas que agora o tomavam.

Um azul escarlate toma-lhe a paleta. Um brilhante, oleoso, vítreo,  empastado,  reflete da tela. E como é forte. E como impressionante esta Jalusa da infância sentada agora numa gare de estação.

Com todos os seus predicados de engomadeira, uma idiota. E só. O sorriso cínico. Sorrindo para a esquerda, o ponto da infância, a esquerda do passado, olhando para o começo no final.

Síntese.

Iberê empastará de tinta o que pudesse lembrar até o seu final. Até que o câncer o vença, até que a morte o derrube, inimigo ferrenho.

A sua mão é infausta, é impetuosa, seus movimentos são bruscos, seguramente hostis.

Não haveria resignação. A Idiota se plasmou sozinha, acredita. A Idiota, na sua solidão, era o começo do seu fim.

IV

Maria que se ausentara por instantes, retorna ao ateliê. Lá está Iberê de costas. A figura arqueada de D. Quixote agora alquebrado. Seu frágil corpo pesa. O pintor, neste ângulo, para a apreciação de Maria, serve como exemplo de um Homem Forte. É a comparação possível que a mulher faz deste momento delicado, e, ainda assim, feliz. De onde tira esta força?, pergunta-se Maria, sabendo, contudo, a definitiva resposta. Iberê pinta. Se não pintasse, morreria. Maria querida olha o pintor. Que olha a tela. Se não acabar será a vingança dela. A tela.

Esmagar a aranha com o sapato forte. Esmagar o medo. Maria aproxima-se. Põe a mão no ombro amigo. A festa dela em seu ombro dá-lhe mais vida. Calmo. Iberê está calmo. Todas as telas ficarão. Ficarão? Pergunta-se o pintor no seu poder de pensar no desespero. A tela inacabada. Iberê umedece os lábios ressecados pela alta dosagem dos remédios. A alimentação dele, agora. Para Iberê, pintor, um dia, todos os dias, Maria arrumou o ateliê. Maria olha suas mãos. Seus dedos finos no trabalho. Maria olha suas mãos. É terrível, para Iberê, a tela inacabada.

A mão, a mão, a mão, a mão está viva. Destampa a tinta, a bisnaga densa, o gesto terroso da mão, a mão, a mão com seu gesto de ferro, ainda está viva. Trabalha. O jeito de pintar ainda é o mesmo até o fim. Alento para a dor terrível.

O pintor na madrugada, preparando sua tela. O silêncio de Maria ao seu lado. Iberê de bruços, busca um novo ângulo. A tela está inacabada. E restará papel armazenado.

― No meu fim sobrou tela!, blasfema Iberê. — No meu fim sobrou tela! — Iberê blasfema,

― Querido!

Que Maria o tire dali! Com seu amor, que Maria o tire dali do ateliê.

― As lágrimas de Maria cicatrizaram minhas feridas na tragédia da vida — diz Iberê.

Que Maria o tire dali do ateliê. Que o tire!

― Ah, minha Maria!

Iberê urrou. Um grito terrível.

― Maria! Ah, minha Maria!

A mão amiga de Maria com os calmantes. Maria está ali solidária. Mas como tirá- lo dali? Como tirá-lo do ateliê? Ela ali o acompanhando. Mas como tirá-lo dali? Aquele pequeno corpo abraçou-se com força ao pintor.

Iberê soltou-se, voltou-se e disse:

― Pinte! Pinte você Maria!

Com seu coração de amor, Maria, companheira, ficou em frente à tela assim, a morrer também. E pintou.

*

Paulo Ribeiro é escritor, autor, entre outros de Vitrola dos Ausentes (Ateliê Editorial), Iberê (Artes e Ofícios), coautor de Tríptico para Iberê (Cosac Naify), O Tal Eros Só – Osso Relato (um livro palíndromo pela Belas letras)

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