Bala Perdida!

É com tristeza que a São Paulo Review continua a série colaborativa, entre mais de 30 escritores nacionais bastante conhecidos do público, com homenagens às crianças assassinadas em tiroteios nas comunidades cariocas.

Cada autor escreve sobre uma das crianças vítimas da barbárie.

Asseguramos a qualidade do teor literário dos trabalhos e assim gritamos bem alto com a arma que nos cabe, a da palavra, contra a violência a que estamos vivendo.

***

Onde?

– Ali no Lins. Agorinha mesmo. Não ouviu os tiros não?

– Claro que ouvi. E não é isso toda hora?! De dia e de noite?

– Teve morte. Uma menina, tadinha. Tão novinha.

– Deus tenha misericórdia.

– Fim do mundo.

A tia gritava.

– A menina tá aí dentro! Deixa eu pegar ela!

Eram dois lados de homens com olhos vermelhos e sangue quente. E as balas voavam aladas procurando onde repousar. A menina sozinha no meio. No meio da sala. A mesma sala onde ela costumava assistir à novela, sentada no sofá. O pai descansando os pés em cima da mesinha. Isso lá no passado. No presente era só ela mesmo. Sozinha. E nem era novela.

A menina ouviu o grito da tia.

– Já vou! – responde. – Vou calçar o chinelo!

A bala achando caminho no crânio, manchando os anéis do cabelo. A tia em choque cuidando em não pisar na massa cinza espalhada no chão. Corre com a menina no colo. Os olhos e a boca gritando. Mas a menina já estava longe. Onde bala não alcança, nem se quiser.

O casal jantava enquanto a televisão escancarava a vida/morte da menina, entre comercial de shampoo e carro importado. A mulher secou as lágrimas na manga da camiseta. O homem balançou a cabeça. O pai da menina também chorava, do lado de dentro da televisão.

Lá longe, onde os homens poderosos moravam, a menina virava estatística só pra não passar despercebida no meio de tantas outras vítimas de balas perdidas. Balas perdidas, que acabavam se encontrando em costelas, barrigas, peitos, pernas ou cabeças de meninas. As balas sempre acham um lugar pra morar.

Milhares de pontos coloridos desenharam o rosto da menina na tela. A tia gritava a história da menina pros homens importantes que nasceram sem ouvidos. O pai levantava um cartaz com o nome da menina pros homens importantes que eram cegos. O casal via e ouvia. E parecia que aquela era uma história antiga. Seria reprise? Ouviam pipocadas de tiros sem saber se era na televisão ou do lado de fora.

Terminou o noticiário. A mulher se lembrou da encomenda importante que precisava aprontar pro dia seguinte. Ainda faltava pregar o zíper branco no vestido branco. O homem, cansado, cochilou no sofá. A cidade mergulhou no anonimato diário. A lua brilhou porque não conhecia a história da menina, nem da bala que chamavam de perdida, mas que tinha mesmo era o nome dela.

 (anônimo)

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