É com tristeza que a São Paulo Review continua a série colaborativa, entre mais de 30 escritores nacionais bastante conhecidos do público, com homenagens às crianças assassinadas em tiroteios nas comunidades cariocas.

Cada autor escreve sobre uma das crianças vítimas da barbárie.

Asseguramos a qualidade do teor literário dos trabalhos e assim gritamos bem alto com a arma que nos cabe, a da palavra, contra a violência a que estamos vivendo.

***

 

   A realidade é essa coisa sórdida e bruta

                       (Samuel Rawet)

Fortuita,

a bala

alada,

como um bólido desnorteado

(cápsula viajante conduzindo o veneno das Parcas)

com seus tentáculos de fogo e aço

penetra o ventre da noite

para no ventre de minha mãe

decretar a noite impune e indissolúvel,

grilagem do meu minifúndio de aconchego

(feto recebendo a compulsória visita do metal homicida).

 

A vida que poderia ter sido e não foi

encontrou na áspera oficina do tempo

a interdição por clandestina sentença.

 

Perdi-me na procela de sangue

que, tão cedo, naufragou-me

numa placenta espoliada

pelo acaso semeador de ocasos.

 

Espúrio o caminho

que o projétil alucinado desenhou

no céu inflamado pelo neon da vindita:

 

sequer ousou conceder-me

a promessa da aurora.

 

Deu-se à luz

uma escuridão absoluta,

essa filha tirânica de Chronos

soletrando cárceres

na boca do (meu) destino

esbulhado.

 

A violência – meu grande ladrão –

roubou-me de mim

ave alvejada em pleno voo

na infame coreografia

daquele disparo

usurpando o horizonte

abortando-me na antemanhã.

 

Acordei no dorso sórdido das trevas

na desolada presença do real

esse arsenal de impossibilidades

sem poder (re)conhecer

[agora no coração da vertigem

hóspede de trágico desfuturo

fortuna estatística dos obituários

anjo albergado na necrópole]

o que seria um verdadeiro

amanhecer

na geografia do íntimo desgosto.

 

Quiseram-me com nome de rei,

mas a sina de ser súdito da barbárie

necrosou toda a biografia.

*

Ronaldo Cagiano é mineiro de Cataguases, viveu em Brasília e São Paulo e reside em Portugal. Autor, dentre outros, de Eles não moram mais aqui (Contos, Prêmio Jabuti 2016) e Observatório do caos (Poesia, 2016)

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