É com tristeza que a São Paulo Review continua a série colaborativa, entre mais de 30 escritores nacionais bastante conhecidos do público, com homenagens às crianças assassinadas em tiroteios nas comunidades cariocas.
Cada autor escreve sobre uma das crianças vítimas da barbárie.
Asseguramos a qualidade do teor literário dos trabalhos e assim gritamos bem alto com a arma que nos cabe, a da palavra, contra a violência a que estamos vivendo.
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A realidade é essa coisa sórdida e bruta
(Samuel Rawet)
Fortuita,
a bala
alada,
como um bólido desnorteado
(cápsula viajante conduzindo o veneno das Parcas)
com seus tentáculos de fogo e aço
penetra o ventre da noite
para no ventre de minha mãe
decretar a noite impune e indissolúvel,
grilagem do meu minifúndio de aconchego
(feto recebendo a compulsória visita do metal homicida).
A vida que poderia ter sido e não foi
encontrou na áspera oficina do tempo
a interdição por clandestina sentença.
Perdi-me na procela de sangue
que, tão cedo, naufragou-me
numa placenta espoliada
pelo acaso semeador de ocasos.
Espúrio o caminho
que o projétil alucinado desenhou
no céu inflamado pelo neon da vindita:
sequer ousou conceder-me
a promessa da aurora.
Deu-se à luz
uma escuridão absoluta,
essa filha tirânica de Chronos
soletrando cárceres
na boca do (meu) destino
esbulhado.
A violência – meu grande ladrão –
roubou-me de mim
ave alvejada em pleno voo
na infame coreografia
daquele disparo
usurpando o horizonte
abortando-me na antemanhã.
Acordei no dorso sórdido das trevas
na desolada presença do real
esse arsenal de impossibilidades
sem poder (re)conhecer
[agora no coração da vertigem
hóspede de trágico desfuturo
fortuna estatística dos obituários
anjo albergado na necrópole]
o que seria um verdadeiro
amanhecer
na geografia do íntimo desgosto.
Quiseram-me com nome de rei,
mas a sina de ser súdito da barbárie
necrosou toda a biografia.
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Ronaldo Cagiano é mineiro de Cataguases, viveu em Brasília e São Paulo e reside em Portugal. Autor, dentre outros, de Eles não moram mais aqui (Contos, Prêmio Jabuti 2016) e Observatório do caos (Poesia, 2016)
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