Resenha: o metal de que somos feitos

recife

Por Raimundo Neto *

Conheci a obra do pernambucano Walther Moreira Santos em outubro de 2008. Meu avô morreu em agosto daquele ano. Eu ainda não sabia o que fazer com a morte dele. As bibliotecas eram lugares seguros para mim. A morte de um significado viria a ser o renascimento de outros; talvez meu avô se tornasse palavra nova. Foi aí que descobri o Walther.

Walther não é autor que se desvende no primeiro encontro. Inconformado com o desconhecido que acabara de aceitar, resolvi tentar conhecê-lo uma segunda vez. O conheci pela segunda vez no mesmo ano, em dezembro. Estávamos numa biblioteca pública. Teresina, no Piauí, ardia seu calor abafado. Eu estava com fome e triste e Walther cuidava-se escondido numa prateleira entre Clarice Lispector e Paul Auster; na prateleira de trás, João Gilberto Noll e Caio Fernando Abreu alternavam seus conteúdos e capas amareladas. O corredor que se formava no espaço entre prateleiras era escuro, nenhuma luz suficiente foi capaz de revelar os títulos que eu procurava. Conhecia Clarice de cor, e Paul, assim como Noll e Caio já me impressionavam, então arrisquei: Sentei-me no canto banhado da luz queimada do sol das cinco horas, livre do calor que escorria do teto de telhas vermelhas e comecei a ler Dentro da chuva amarela. Depois veio Um certo rumor de asas (Prêmio Nacional de Romance 2000 Fundação Cultural da Bahia, Prêmio Casa de Cultura Mario Quintana 2003). E veio em seguida O ciclista (finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2009).

A última vez que tentei conhecê-lo (e não sei se isso – de conhecer o impossível – chegou ao fim, ou ao menos começou) foi ao ler O metal de que somos feitos, seu primeiro livro de contos, vencedor do Prêmio Pernambuco de Literatura.

O livro é infestado de uma vingança displicente, livre e casual. Digo também que o livro está cheio de tudo, de mundo. E o mundo também não vive tentando vingar-se do que nos tornamos? É que os personagens de Walther Moreira Santos não são maus; amam a revelação da bondade em seus atos mínimos. Os personagens, vivos em mim, como eu, são incapazes de encontrar no ressentimento uma saída.

Algum personagem conta a história futura de um santo, uma disputa de terra santa que se tornou um sacrifício, a fé resistente que planeja reparação. No futuro presente em um dos contos, não muito distante de hoje, prisioneiros são observados pela modernidade numa prisão cheia de “corredores-labirintos”: e a linguagem é uma saída, ampla, que leva o leitor para frente. Palavras devidamente encaixadas, blocos de significados, um mosaico de sentidos. Aparenta o início de um brinquedo de encaixe, uma construção para diversão. Ao final, o leitor está diante de uma montanha, uma elevação imponente, e o impulso de salvar-se, escorregar, pular, sem medo.

O amor não é fácil em “Equação”, por exemplo. O desejo é um risco, uma roleta-russa, e uma montanha, russa também; ninguém ousa dar nome ao que acontece a/entre quatro amigos. Estão perdidos na soma de suas iniciativas que subtrai algo a cada distância. Manter-se presente quando o amor escapa a cada partida é somar ou dividir? O ódio mantém-se largado em coágulos escondidos entre os contos, uma unidade de vingança estabelece-se e cria a sensação de explosão iminente, desastre pressagiado, uma catástrofe prestes a romper-se e absorver o leitor, ao tempo que o estilhaça.

A violência presente nos contos se assemelha ao amor: desmesura, desencontro, perspectiva fraturada, o exagero da reação ilimitada diante do objeto amado/temido/rejeitado/ofendido. O amor é uma herança facilmente penhorável; uma história vencida e que custa caro. A vingança, porém, não é planejada, vai deslizando insólita, brava, mas paciente, despreparada, pelos corredores vazios de uma fundação antiga, a impotência de viver decidido. Quando há morte, tem asas compridas, e estendidas, e embaixo delas abriga-se uma ressignificação simplificada: como se morrer não fosse mesmo uma catástrofe. Porque a morte vem depois do amor; não como ação premeditada, está mais para cotidiano inescapável.

Todos os personagens seguem os passos escritos de Cassandra, uma das cativantes personagens do conto “O tempo semeado em tempo aberto”: Eles estão abertos, livros expostos sobre uma mesa vazia, encerada, as letras escorregando para fora de suas presenças incorpóreas. Seguro a mão de Cassandra e fecho o livro, que me leva para o fim, o começo dos meus novos começos.

Eu sabia que meu avô não voltaria a viver. Porque eu havia ligado trinta vezes para seu celular e ninguém atendera. Apenas o ruído do além-mu(n)do. Desliguei com medo de cobranças indevidas. Custos caros me metem medo. Não apenas por isso. Eu não deixaria de sentir a falta dele. Ou a falta dele não sairia de mim, não por onde entrou. Eu continuaria tentando me vingar (de mim), por não saber ressuscitar amores mortos. Não alimentaria remorsos insolúveis. Foi quando entendi que os personagens do Walther estão sempre a ganhar algo maior (na vida) quando perdem algo mais ainda (na morte). Talvez fosse possível para mim também. Pensei ao fechar os primeiros livros que li do Walther Moreira Santos. E ao terminar de ler O metal de que somos feitos. Quase todos eles vieram depois que meu avô transformou-se em lembrança.

Quero recomeçar agora. Que próxima linha de Walther Moreira Santos levar-me-á até mim?

A fé, estilhaçada; o amor, morto. E aqui está a vida nos livros de Walther: ninguém é capaz de escapar da esperança.

O metal de que somos feitos, de Walther Moreira Santos, Editora Cepe

Avaliação: bom

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Raimundo Neto escreve, mas, conforme o próprio, ainda não é escritor. Foi mencionado na Revista Bula e no Jornal Opção como um nome que poderia estar na Geração Zero Zero. Publicou contos na extinta Revista Malagueta, no site da revista Bravo (também extinta), e venceu um concurso literário (Contos de Teresina  – 2º colocado). Tem um blog, extinto também: www.agentesempretenta.blogspot.com e uma coluna no site O pensador Selvagem (parece que também extinto. Escreveu conto para a Revista Parênteses