30 anos sem Rawet

Foto: Marcel Gautherot/IMS

Há exatos 30 anos – em 22 de agosto de 1984 – morria o polonês Samuel Rawet, escritor e engenheiro estabelecido em Brasília, hoje uma das grandes referências da literatura contemporânea nacional.
Nascido em família judaica, veio para o Brasil em 1936 e morou nos bairros de Ramos e Olaria até se formar engenheiro, quando se mudou para Brasília, participando da construção do distrito.
Sua obra literária inicia-se com Contos do Imigrante, de 1956, e encerra-se com Que os Mortos Enterrem Seus Mortos, de 1981. Após sua morte, seus livros foram praticamente esquecida, até ser reeditada pela Civilização Brasileira, em Contos e novelas reunidos, edição organizada por Rosana Kohl.
Entre os estudos em torno do seu nome, destaque para Samuel Rawet – Ensaios Reunidos , organizado por Rosana Kohl Bines e Leonardo Tonus (professor da Sorbonne-Paris e parte do conselho editorial deste site).
Para homenagear o autor, Ronaldo Cagiano* nos manda um conto que tem Rawet como inspiração. Leia a seguir.

Óbito 75.888

Naquela segunda-feira em que não compareceu à repartição, ninguém deu por conta. Era sempre assim: uma depressão de fim de semana, um acometimento hepático pós-feriado, um incômodo psicológico, uma simples não-vontade de ir trabalhar… E não aparecia, pronto.

Corta o ponto, Vicente…

Mais uma vez, ninguém ligou. Nem tocou o telefone de sua casa. Sobradinho, a mais aprazível cidade do cerrado, era ali mesmo, quase um pulo. Mas ele devia estar cansado e não desceu a serra para, ao menos, assinar o ponto, como muitos faziam nas repartições naquela época sinecurosa e de vacas gordas sob a ditadura.

O chefe da seção de engenharia do Ministério também não chamou para sua casa, como nas primeiras ausências. Deve ser mais uma das dele. Só pega no tranco.

Não chovia nem fazia sol para os lados da Asa Norte. Apenas as cigarras de agosto e a névoa seca de um tempo de estiagem a penalizar o cerrado do Planalto Central. Vir ao Plano Piloto? Nem pensar. Poderia ser surpreendido por um colega de trabalho, como daquela vez em que tirou licença médica e foi visto antes do meio-dia saindo de um boteco no Conic, tradicional centro de escritórios e variegado comércio popular, que à noite dá lugar aos “inferninhos” e assume seu lado “underground”. Melhor ficar em casa, vendo a tevê em preto e branco ou voltar-se aos livros de sempre: Hamlet, Guerra e Paz, Um homem sem qualidades, Tolstoi, O Aleph, Carta à noiva, Coreografia dos danados, ainda um Rosa, um Bandeira, um Becket, um Lobato, de quem, sobretudo, gostava. Nem havia times de futebol em Brasília que justificassem sua torcida. Desconfio: ele detestava futebol, Paulo Coelho, os best sellers americanos e a travestida pseudomúsica sertaneja (com seu lirismo vulgar e padronizado). Em campo, preocupações apenas com a campanha que prenunciava Tancredo Neves na disputa do Colégio

Eleitoral que, para os radicais da esquerda que só aceitavam as Diretas Já, era uma saída conservadora, para mitigar a pressão popular.

Na estante, com um dos pés quebrados sustentado num tijolo: uma vitrola Phillips; antigos vinis empoeirados de música clássica e jazz; num quadro com o vidro trincado, uma foto desbotada com soldados sobre tanques na Primavera de Praga; a receita de óculos amarelecida sob uma penca de chaves; sobre um pires de porcelana rachado, a vela Cristal usada até a metade; uma carta num envelope de Ituiutaba, com as iniciais LV do remetente; a cartela de Lexotan – companheiro de seus últimos anos. Poeira e cansaço nas paredes. Insularidade que se constatava a cada passo.

Naquela semana os jornais, além das notícias das alianças políticas para pôr fim ao governo militar, falavam de obviedades. E dias antes alguém o viu de bermuda, as barbas grisalhas mal cortadas, com suas havaianas, uma gaiola na mão, em plena via pública, quando foi surpreendido por um transeunte.

– “Vou pegar rato judeu”.

Na terça-feira, não compareceu a uma reunião com um grupo de historiadores que estava realizando um estudo sobre a época da construção da Nova Capital, para onde ele viera, juntamente com Joaquim Cardozo, integrar a equipe de Niemeyer, e acabou responsável pelo cálculo estrutural do edifício do Congresso Nacional. Mais uma furada do velho, resmungou seu editor, aquele português sob impagáveis lentes fundo de garrafa.

Deve ser a enxaqueca ou está de novo de mal com a vida, completou o agente administrativo, que, costumeiramente, enchia a garrafa de água que ele levava para casa depois do expediente. Na quarta, nada. Na quinta, o chefe com a pulga atrás da orelha, ele nunca ficou tantos dias sem vir, sem dar satisfação, tocou, tocou, tocou mais no fim do dia, insistentemente, até cair a ligação.

Amanhã você passa lá, Natalino, traz o homem de qualquer jeito, disse ao bedel da tarde.

Na sexta, bem cedo, o garoto que entregava o leite nas casas das quadras 2 e 3, estranhou os embrulhos de pão acumulados na varanda, cisco e folhas secas espalhadas na porta da entrada, um mau cheiro a lembrar animal morto, uns urubus circunavegando sobre o telhado, a silhueta do cão Beethoven, angustiado, com suas patinhas fazendo barulho no vidro da janela fechada de um dos quartos. Na porta da sala, um estranho balé de moscas buscando uma brecha para entrar, contas de luz, telefone e correspondências entupindo a caixa de coleta enrustida no muro.

Dona Judite, a costureira da casa em frente, já havia telefonado para a administração regional, para o Corpo de Bombeiros e à Polícia reclamara, dois dias antes, do mau cheiro. Deve ser a fossa, ele nunca chama o caminhão pra esvaziar, ouviu da outra vizinha. Telefonar, não telefonou. Atender, nem uma vez. A última em que foi visto, era sábado, tinha ido ao comércio: foi comprar os jornais na banca do italiano e aproveitou para vender a preço de banana um quadro de Di Carrara, O corcunda de São José dos Campos: precisava de dinheiro e sua casa já estava quase sem nada. Voltou trazendo uma garrafa de plástico com água mineral Minalba, pela metade. E foi dona Sebastiana, a mudinha peregrina e solícita, que abriu o portão e contemplou aquela estranheza nos seus olhos, um silêncio de despedida. Viu-o entrar pela última vez. E uma nuvem espessa sobre sua cabeça. Antes de bater a porta, olhou-a com uma ternura imprevista. E foi só.

Já fazia uma semana que ele não dava as caras.

O repórter do Correio Braziliense tentou ligar, para arrancar-lhe uma entrevista, embora soubesse de antemão ser ele um contraponto dos arruídos literários, a misantropia em pessoa. Preferiu arriscar, ir lá: queria um depoimento sobre a morte de um famoso escritor americano. Deu com os funcionários do IML retirando o corpo em adiantado estado de putrefação. Haviam-no encontrado com a cabeça dentro de um prato de sopa Knorr, a Telefunken ligada, mas “chuviscando”, a luz amarela de um abajur projetando a silhueta dos móveis e objetos e uma assembléia de varejeiras rondando a sala e sua solidão mineral.

A tarde liquefeita num crepúsculo sangrento no horizonte da cidade satélite encerrou o mistério de muitos dias, dias em que, cadeira vazia e mesa cheia de papéis, ele despediu-se sem aperto de mãos. Uma colega de trabalho mexeu nas suas gavetas e garimpou algo rabiscado numa folha solta: “Tenho grandes frustrações e decepções, e grandes euforias. Amo e odeio apaixonadamente. Uma vida intensa, difícil, saborosa. Acho a vida uma grande aventura. Espero que os idiotas me compreendam.” Dias em que, em algum lugar do mundo alguém teria lido os contos do imigrante, ou não conheceu os sete sonhos entre tantos devaneios de um solitário aprendiz da ironia. O errante personagem de si mesmo acabara de ganhar vida contra a inércia letal do mundo. E libertou-se para sempre da alma fatigada.

No outro dia, fui ler os jornais. O obituário do dia 26 de agosto de 1984 foi totalmente dedicado a Truman Capote.
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P.S. Este conto, se tanto não fosse, ainda assim, é uma homenagem a Samuel Rawet.( ¹)

( ¹) Um dos maiores escritores brasileiros, o judeu polonês Samuel Rawet nasceu em Klimontow, em 23.7.29. Nos últimos anos de sua vida, profundamente deprimido e desiludido, isolou-se em Sobradinho, uma cidade satélite do Distrito Federal. Lá faleceu, solitário e sem assistência. Com uma narrativa visceralmente ligada aos problemas existenciais, seus personagens refletem um ambiente de incomunicabilidade e solidão. Rawet rompeu solenemente com o judaísmo, e assim justificava sua atitude: “Não, não sou anti-semita, porque semitismo não significa necessariamente judaísmo, sou anti-judeu, o que é bem diferente, porque judeu significa para mim o que há de mais baixo, mais sórdido, mais criminoso, no comportamento deste animal de duas patas que anda na vertical. Não vou pedir desculpas pela linguagem vulgar. O meu vocabulário é o do carioca, e com pilantras é impossível, e inadequado, literária e estilisticamente, o emprego de vocabulário mais refinado. Quero pedir a essa meia dúzia de oito ou nove, ou quatro ou cinco, de judeus ou parceiros de judeus em suas transas marginais, que vivem me aporrinhando por aí, que desinfetem.”

* Ronaldo Cagiano é mineiro de Cataguases. Viveu em Brasília e está radicado em São Paulo desde 2007. Colabora em diversos jornais e revistas. Estreou na literatura com Palavra engajada (Poesia, 1989). É autor de livros de prosa, entre os quais Dezembro indigesto (Prêmio Brasília de Produção Literária 2001 – Contos) e Dicionário de pequenas solidões (Língua Geral, contos, 2006)

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