* Por Virna Teixeira *

Amanheci apaixonado. Foi no dia seguinte ao meu encontro com Dieter em Hamburgo. Dieter. O amor que nunca engatou. Ou ele tinha medo do amor? Ele estava à minha espera, sentado no bar. Recuei lento para apreciar aquela visão. Depois de dois anos Dieter me aguardava, sentado, loiro e solene, com sua germânica beleza de submisso, mesclada com traços de mãe escandinava. Lindo, trágico e doce.

Nosso encontro foi breve mais intenso, com uma penetrante troca de olhares cheia de significados e palavras. Tomamos dois drinques, mas ele estava ocupado com um compromisso cedo no dia seguinte, e pediu que eu aguardasse até o final da semana para fazermos ‘aquelas coisas’. O que significava estar pela noite, usar coisas ilícitas. O corpo em modo de espera, por aquela boca, aquele dorso, aqueles glúteos perfeitos, deliciosos para um spanking. Consenti, e nos despedimos com um abraço forte, na entrada do metrô.

Eu tinha enfim voltado meses atrás para a Alemanha após uma passagem frustrante pelo Brasil para resolver problemas de família. Arrumei um emprego numa pequena cidade a uma hora de trem de Dusseldorf, e estava de férias na casa de um amigo alemão. Uma casa esplêndida, com obras de arte e fotos de homens nus. A alegria de estar em Hamburgo, rever amigos, o festival queer de cinema, os bares. E encontrar as pessoas em outro ritmo, ter paciência, afinal era meio da semana. Sim eu ia esticar e esperar por Dieter até o final de semana antes de seguir para Berlim.

Levantei tarde, com um pouco de ressaca de gim da noite anterior, disperso pelos bares de St. Georg. Cozinhei feijão, que dispus com uma salada de batatas num prato de porcelana decorado com o desenho gótico de um esqueleto, as bordas pintadas com ouro líquido.

Meu amigo alemão vivia com um escravo fiel, marroquino, que tinha distúrbios de aprendizagem e dificuldades para aprender o alemão. Eles se complementavam perfeitamente, master e slave. Um branco, outro com a pele azeitonada, ambos carecas. Havia fotos deles pela casa, algumas recentes do verão, uma foto em Colônia, um com um óculos de armação néon, bem anos 80, o outro mais discreto, encoberto por lentes degradê, olhando vagamente para a câmera. Eu sentia falta de viver com alguém, mas meu futuro na Alemanha estava ainda bastante confuso.

Este período de férias era perfeito para recordar e devanear, como Proust, por meandros de vivências passadas, lembranças labirínticas de meus anos anteriores na Alemanha enquanto eu decidia o que ia fazer da vida. Eu desdobrava na memória a ruptura da minha breve relação com Dieter, nosso romance desfeito com a minha partida súbita para o Brasil. Ele tinha medo do amor ou eu? Era muito trabalho segurar sua constante necessidade emocional de minha presença e a louca relação de corpo que tínhamos. Ele sabia disso, e eu também. Foi melhor para os dois. Mas de repente me veio a visão da sua escolha perfeita de vestimenta no nosso encontro de ontem, que reacendeu aquela paixão não consumada de todo, e a saudade.

Quando o avistei no bar, Dieter usava uma calça preta colada, uma bota meio cano preta, uma malha leve com uma jaqueta preta de couro por cima, e uma echarpe de algodão preta muito fina enrolada na cabeça. Eu queria tirar peça por peça daquele guarda-roupa casualmente escolhido, celebrar minha paixão estética por ele. Imaginei minha performance máscula, silenciosa, totalmente sob controle de uma situação sexualmente tensa e excitante.

Eu sempre tive vocação para ser o dominante mesmo em orgias, em dark rooms e festas de apartamentos pelo mundo. Nas noites de montação eu me maquiava sozinho, preciso, e colocava uma cuecão preto, bem masculino, sob o vestido. O crossdressing como mero disfarce. Sempre fui o caçador dominante, minha retina atenta para o momento de agir certeiro no movimento da presa. Por isso nunca gostei de aplicativos como o Grindr, preciso do jogo sensorial dos olhares, da pele, os jogos de sorte e azar do erotismo.

Mas a proximidade da paixão me deixava vulnerável, meu coração frágil como aquele prato de porcelana com o esqueleto. Aquela mescla de violência com romantismo pop de amor eterno. Leonilson bordando os paninhos dos seus amores sado-masoquistas e ouvindo Madonna cantando Cherish. Eu um canceriano na verdade cansado de broken hearts como na canção, dos jogos perigosos que se escondem atrás de um par de jeans, querendo alguém que me acalentasse.

Ri comigo mesmo pensando que voltaria a uma cartomante se estivesse em Fortaleza, para saber de minhas chances com Dieter. Seria ele o namorado que não deu certo da outra vez? Ela falou de um grande amor que ia chegar e ficar. Ir à cartomante. Escapismo tropical, uma cultura barroca e passional-novelesca demais para o pragmatismo alemão. Embora as novelas escondam o que não é heteronormativo, a violência exibida nas telas de casas de família é de outra norma.

Para me distrair fiquei conversando no WhatsApp com uma amiga brasileira radicada na Holanda, após pegar uma cerveja na geladeira. Falamos de Bataille, de Fassbinder, de desejo e transgressão, do amor como objeto eficaz de repressão social. Filosofamos. Falei de Dieter, ela de seu submisso, de quem se distanciava com uma disfarçada mágoa e saudade. Para impôr respeito. Citou uma frase de Louise Bourgeois ‘women are losers, they are beggars, in spite of women’s lib’. Mesmo em posição dominante, é preciso um esforço tremendo quando se é mulher, ela disse. Eu concordei. Pairamos por mergulhos tão profundos, até terminar a conversa com uma canção de Marlene Dietrich, Ich hab noch einen Koffer in Berlin. A tarde de outono fria e acinzentada pela grande vidraça da cozinha.

Anoiteci apaixonado. Mais três noites até a incerteza e o frisson do meu encontro com Dieter para ‘fazer aquelas coisas’. Qual seria o paradeiro depois? Suspirei. E lembrei que teria que partir na semana seguinte, com minha pequena mala para Berlim num trem matinal, e esperar o porvir.

*

Virna Teixeira nasceu em Fortaleza. É poeta, tradutora, tem vários livros de poesia e tradução publicados, e prepara seu primeiro livro de contos. Graduou-se em medicina no Brasil, e hoje vive em Londres, onde trabalha em hospitais psiquiátricos do NHS. Seu último livro de poemas, Suite 136, é baseado nesta experiência profissional. Virna dirige uma editora independente, Carnaval Press, e é editora da revista Theodora (www.theodorazine.com).

*

Arte: bordado do artista Leonilson

 

Tags: