* Por Nilma Lacerda *

A cidade como um rolo, antigo volumen a se desenrolar pouco a pouco, liberando o conteúdo nas colunas de texto. É a sensação ao chegar ao coração moderno da cidade do México, onde a antiga Tenochtitlan, antigo e soterrado coração, palpita sob seus escombros. À maneira de igrejas e cidades da Europa e Ásia, este segundo coração bombeia memória da cultura rasurada pelo conquistador nos canais que alimentam os subterrâneos urbanos. Cidade do México, distrito federal da república mexicana, o D. F., em muito semelhante neste século XXI a metrópoles como Tóquio, Seul, São Paulo, Hong Kong. Por veias de antigo e novo coração, chegamos para percorrer a cidade, encontrar suas vozes, os escritos que a marcam e que vai entregando ao visitante interessado.

Cidade do México, 22 de abril de 2006.

Emilia Gallego Alfonso me convida para participar do Festival de la Palabra, evento de promoção de leitura que une várias instituições da América Latina. A direção do Festival encarregou-a de montar um simpósio, a partir de seu conhecimento enquanto presidente do Congreso Lectura. Assim, estamos aqui entre outros, Marina Colasanti, Fernando Cruz Kronfly, Débora Weinschenker, Emilia, para discutir este tema tão contemporâneo, tomado do ângulo que costuma suscitar mais dúvidas e paixão: como fazer com que as pessoas se tornem leitoras? Leitoras de literatura, é evidente, na medida em que leitores do utilitário cotidiano somos obrigatoriamente todos os alfabetizados, e em cifra normalmente alta nas grandes cidades. Na cidade, as pessoas alimentam bibliotecas, arquivos, fundamento da expectativa de quem trabalha com formação de leitores.

Ouvimos Nélida Piñon na palestra de abertura, evocando seu “Presumible Corazón de América”, discurso proferido por ocasião da recepção do Prêmio Juan Rulfo, em 1995.

Sou uma mulher a quem meu avô galego emprestou sua memória. […] Portanto,  meu avô é a minha narrativa. No meu ser sobejam as memórias que não vivi, não apalpei, mas que terei herdado. Minha memória aloja-se onde sempre estiveram o pensamento, a emoção, as paixões humanas. Sou diariamente perseguida pelo espírito da narrativa. Sei que o mundo é narrável e que a arte, em meio ao desespero e a esperança, alcança e interpreta as dimensões humanas.

 

Não tive avô galego me emprestando memória. O avô português, autoritário, era um homem de seu tempo. Impediu minha mãe e minhas tias de estudarem, e dessa forma, me chegou um avesso marcado por espaços em branco, por isso mesmo preenchível, percorrível, narrável.

Para narrar, é preciso como diz Nélida, estar perseguida pelo espírito da narrativa, mover-se pela curiosidade, debruçar-se sobre a cesta de lixo dessa sala de trabalhos do evento, que serve à organização e aos convidados, e recolher um fac-símile endereçado à própria Nélida. O documento estava íntegro, seis páginas dobradas ao meio. O verso de folhas usadas da rouparia do hotel servia à impressão do fac-símil, endereçado ao quarto 101. Na cesta de uso comum ao ambiente, sem estar rasgado, o fax não era uma correspondência privada. Um assunto bem público, na verdade: a exortação da união de intelectuais em defesa de Helena Poniatovska, atacada injustamente em meio ao jogo político de disputa pela presidência da República.

 

San La Muerte é um culto que corre em Buenos Aires, entre prisioneiros comuns. Santo A Morte, literalmente, em português. Raro o nome do santo, com o artigo precedendo o nome próprio que designa a divindade. Representado como uma pequena caveira, o santo é esculpido em um pedaço de osso humano e colocado pelos presos debaixo da pele. Um quisto a fechar o corpo na proteção contra a morte, operada por antigas divindades de sacrifício assimiladas à cultura cristã.

Cidade do México, 24 de abril de 2006.

Ano passado, o Centro Cultural Banco do Brasil apresentou no Rio de Janeiro a exposição Por Ti, América, com peças da cultura pré-colombina cedidas por museus de vários países. A divulgação destaca que Por ti América é a terceira mostra da trilogia de exposições do CCBB sobre a formação da cultura brasileira, antecedidas por Arte da África e Antes − Histórias da pré-História. A busca por uma realidade cultural de pontos comuns, construída pelas violências sofridas durante a colonização e as opções de integração ou resistência, ou uma e outra, tem sido uma constante na história desta América. Como irmãos batidos por um mesmo pai, a língua da deserança pode ser uma forma de consolo, construção de outro legado.

No café da manhã, Débora Weinschenker, da Argentina, contou as dificuldades de um voo anterior, que, por proibição de atravessar o espaço aéreo boliviano, desencadeou atrasos sucessivos nos voos subsequentes.  Sem muito mais informações, apenas lembramos que Evo Morales assumiu faz pouco o governo da Bolívia.

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Ilustração: Tecido Inca

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Nilma Lacerda é autora de Manual de Tapeçaria, Sortes de Villamor, Pena de Ganso, Cartas do São Francisco: Conversas com Rilke à Beira do Rio. Professora da Universidade Federal Fluminense e também tradutora, recebeu vários prêmios por sua obra, dentre os quais o Jabuti, o Prêmio Rio e o Prêmio Brasília de Literatura Infantojuvenil.

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