* Por Sérgio Tavares *

Não há heróis e vilões em Cabo de guerra, de Ivone Benedetti. Há só heróis ou só vilões, dependendo do ponto de vista. O recente romance da respeitada tradutora e doutora em literatura tem como palco dramático o regime militar, caracterizado pelas forças que se extremavam na luta político-ideológica da época: a direita, que aprovava, patrocinava e defendia (com prisões arbitrárias, desaparecimentos e torturas) a ditadura vigente; e a esquerda, que agia em ações armadas e clandestinas (praticando assaltos e atentados), com intuito de destituir o governo totalitário e implantar o comunismo, a ditadura do proletariado. O personagem-narrador da história transita, sub-repticiamente, pelos dois lados desse embate.

É um “cachorro”, termo designado ao militante que traía seus companheiros e colocava-se a serviço do regime na condição de espião. Praticando um jogo duplo, este participava de encontros e inteirava-se de missões da sua organização, repassando todo um relatório posteriormente para seu controlador. Apesar do comportamento vil, o “cachorro” criado por Benedetti não expressa vilania em seus atos; age mais por acaso que por ideal ao entrar na luta armada e ao se tornar informante da repressão, apresentando um bizarro alheamento, um egoísmo patológico, uma mediocridade quase pueril de caráter que, de certo modo, o faz ainda mais perigoso e perturbador.

A trama se divide em dois cortes de tempo (mas com distensões pregressas de temporalidade) que se intercalam na construção narrativa: o presente, que se situa em 2009, quando o narrador, paralisado numa cama, sob os cuidados da irmã religiosa, rememora os fatos ocorridos há 40 anos, num passado que está entre as décadas de 60 e 70, em São Paulo, mas que também recua até a infância, em Nazaré das Farinhas, no interior da Bahia. Esses trechos são desenvolvidos com vista a dar fundamento à sua psicologia variada e estabelecer um retrospecto até o momento onde o relato encontra certa linearidade. Ali estão os traumas de menino, os surtos psicóticos que o acompanham após presenciar uma morte familiar, a decisão de deixar tudo para trás e tentar a vida numa cidade que lhe joga numa pensão barata, sobrevivendo entre o emprego de garçom e a escola secundária, até conhecer Rodolfo que, das reuniões de estudo de marxismo até um ano inteiro de leituras, convida-o a uma festa em Santos.

Esse é ponto de partida da história central. Na festa que não há, o personagem presencia a morte de um jovem por atropelamento e, de volta a São Paulo, com a ajuda de um amigo que faz transações de carros, procura a família da vítima a fim de revelar o que sabe visando uma recompensa financeira. O pai do atropelado, um rico empresário ligado aos militares, encara a negociação como chantagem e o expulsa da casa, no entanto a mãe combina, às escondidas, um encontro posterior. Nessa segunda ocasião, ela lhe oferece um emprego em troca da chapa do carro. A informação bate, outros encontros acontecem e, deles, vem à tona um relacionamento pautado estreitamente pelo sexo, no qual a mulher busca preencher o vazio de uma vida de submissão, desprezo e, agora, de luto, e o narrador cativar a oportunidade inédita de obter vantagens.

Isso inclui um emprego num escritório dirigido por um coronel, durante o mais violento período da ditadura, ainda que este siga participando ativamente da luta armada, frequentando aparelhos, sendo cooptado para missões clandestinas. Não há traço de gravidade ou peso de consciência, no que faz. Fareja uma ascensão profissional (e social), imaginando-se seguro por ser servil, por ser um cupincha, por ter as costas quentes. Assim, quando lhe cai suspeitas e é conduzido ao Dops, não precisa sequer ser torturado para trair seus companheiros; voluntariamente, torna-se um “cachorro”.

Benedetti demonstra domínio pleno sobre a construção narrativa que, com bom ritmo e variações de tom e de linguagem entre passado e presente, abastece-se da história viva sem que esta inunde por completo a trama ou seja relegada a pano de fundo. Verdade e ficção aqui se fundem numa composição estável, um plano habitado por fatos e pessoas da época que, interagindo com personagens inventados, por nada se distinguem. Essa potência que oblitera a pesquisa e a converte num crível relato de memórias é a mesma que dá camadas a esse narrador complexo, um personagem intrigante que é produto do seu tempo, mas que, da mesma maneira, mostra-se distante de toda vida político-social e das transformações do seu país. Caminha-se para dentro, no rastro de uma voz que propicia uma experiência de alteridade e sentido.

(…) o passado não vivido não passa, fica atormentado, querendo ser chamado de presente, ocupando armários, cadeiras, sempre aí, sempre aqui. Então, tentando apagar essa presença deslocada, a gente vive tudo lembrando, mas quem revive não é a gente, e sim o passado, de modo que a gente passa o tempo realimentando o tempo, e isso não acaba nunca. Assim, quando a minha irmã, perene presença, entre e passa no meio dos fantasmas que atravancam este espaço, é tanta a força deles que quem se torna invisível é ela”.

Como afirma o jornalista e escritor B. Kucinski, no texto da orelha, “na diminuta estante da ficção ambientada nos anos de chumbo, Cabo de guerra destaca-se”. E certamente não há ninguém com maior estatura para enxergar esse notável romance nas primeiras prateleiras.

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Cabo de guerra, de Ivone Benedetti (Boitempo, 304 págs.)

Avaliação: pena-01pena-01(muito bom)

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Sérgio Tavares é escritor

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